A cidade morta – Sergio Agra
Com Veneza na lembrança
— Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca…
Sim, foi isso que eu ouvi Aleph murmurar.
Na parede dos fundos da garagem, ocupando todo o pé direito, Aleph vislumbra o imenso armário de mogno com inúmeras prateleiras totalmente vazias. No alto, o objeto de sua busca: a pesada caixa que lembra baús de corsários. Sem se preocupar em espanar o pó que se acumulara com o tempo ele deposita a arca sobre a mesa da sala de estar da casa da praia. A arca guarda cartas e cartões postais de variadas cidades europeias, que Aleph enviara aos pais; antigos retratos em branco-e-preto. Para espanto seu, um envelope ainda lacrado, sobrescrito com a inconfundível letra de Maria Clara M.B. Antes de abri-lo, ainda sob o efeito do inusitado, ele se dirige até um pequeno console e seleciona sem qualquer pressa um CD.
“Glück, das mirverblieb, / Rückzumir, meintreues
Lieb.AbendsinktimHagbistmir /LichtundTag.“*
Das caixas de som fluem as primeiras e melancólicas entonações, num timbre aveludado, rico e de grande amplidão no registro agudo, da soprano Renée Fleming, na Ária Glück das mirverblieb, da Ópera Die ToteStadt, de Erich Wolfgang Korngold. Tudo ali se adéqua ao seu estado de espírito: o céu carregado de nuvens, o brilho bruxuleante da pequena luminária, o pungente andamento da música, o som do silêncio daquela praia deserta e desolada. Die ToteStadt: a cidade morta!
No envelope, sem qualquer bilhete, mensagem ou recado por mínimo que fosse, encontra-se um único retrato de uma jovem mulher em sua beleza natural, sem quaisquer extravagâncias, trazendo seguro por uma das mãos um menino contando três a quatro anos de idade. Amos se encontravam sobre a Ponte dos Suspiros. Diz a lenda que, na Veneza dos tempos remotos, os prisioneiros atravessando-a suspiravam na ocasião de ver pela última vez o mundo externo. De imediato, uma estranheza desperta a atenção de Aleph: o melancólico olhar da moça da foto. O guri, alheio aos sentimentos que varavam a alma de Maria Clara, trazia o semblante fagueiro, levemente malicioso, os cabelos ocultos por um colorido gorro de esquiador. No verso da fotografia, a mesma letra a demonstrar a forte personalidade de sua dona apenas informava: “Veneza, dezembro de 1986”…
Aleph não logrou conter o amargo e triste sorriso à lembrança das palavras que, numa remota e enluarada madrugada em que o silêncio somente era quebrado pelo ruído dos carris dos tanques do Exército sobre os paralelepípedos, clandestinos, protegidos por montanhas de embalagens e caixotes acomodados no vagão de um trem, rumo a Santana do Livramento, porta do exílio de Maria Clara, ela lhe dissera: – Algum dia, em algum lugar, hei de sentir meu corpo e minha alma, libertos, sob as águas de uma cachoeira…
“…NahtauchSorgetrüb, / rückzumir, meintreuesLieb,
NeigdeinblaßGesicht. / Sterbentrenntunsnicht
Sterbentrenntunsnicht, glaub, esgibtein / Auferstehn”.**
Nesse momento, graças à minha intervenção, Aleph a tudo compreende…
*Alegria que permanece perto de mim, /Vinde a mim, meu verdadeiro amor /Noite afunda no bosque.
Você é minha luz e dia),”.
**Apesar de tristeza se torna escuro,Vinde a mim, meu verdadeiro amor. / Incline-se para mim o seu rosto pálido
A morte não nos separa.Se você deve me deixar um dia,
há uma vida após a morte.”