A Tia Chininha no Jardim – José Alberto Silva
Todo mundo tem uma tia Chininha ou Tia Cotinha em suas vidas. Quem não tem uma no jardim de suas lembranças não sabe o que seja sentir embrulhos de enjoância para segurar vontades espasmódicas de gritar. Eu tenho uma tia Chininha, no papel com 99 aninhos agora em janeiro/22, cheia de memórias, amarguras represadas e lembranças reticentes.
Tira temporadas lá em casa e noutras sobrinhadas onde sempre é – bem vinda. A parentada aparece por lá ou apenas liga alegando distância para vencer a ingratidão; vamos a Missas mais do que normalmente; ela pergunta sobre festas e jantares para levá-la, leva-mo-la para visitar amigos distantes, enfim, altera nossa rotina de horários e qualidade das refeições. Várias peripécias marcam suas passagens em minha casa.
A primeira característica de uma tia com apelido de Cotinha ou Chininha é que numa roda de conversa, levantam questões fora do contexto em pauta como se quisesse mudar de assunto o tempo todo; outra característica é que possuem compulsão à crítica, bem entendido que compulsão à qualquer coisa revela pessoa maçante ou pouco confiável. Chega com a pergunta na ponta da bengala sobre a limpeza do meu jardim infestado de abobrinhas da índia louca, erva de passarinho e outras “coisas ruins”. Se debocho dela, repete que é a ligação com nossa ancestralidade, por ser a última de uma penca do que seriam centenários irmãos. Nenhuma doença grave penetra sua carcaça petrificada e quando fala em morrer: acentua se eu morrer – “a-ma- nhã!”. Não da tempo para respostas e ja que falamos em morte ela desafia:
– Minha Palmeira da China já morreu? – Referia-se a Archontophenix Purpurea plantada num enorme vaso preto como ela posto debaixo de uma escada para não chamar atenções mas que é desproporcional às dimensões da sala.
Ela nunca gostou da idéia de dar apelido de mulheres para plantas que já possuem nomes populares. Meu jardim levado no capricho do possível, homenageia com plaquinhas o nome de amigas, parentas, filhas, netas e ela própria, a Tia Chininha, irmã mais nova do meu pai Aristeu Carlos da Silva. Às curiosidades eu chamo, orgulhosamente, de monumentos, tais como o Portal da Eternidade adornado por frondoso bouganville, com o nome da Orfila, a Tuta; tenho a escada de Jacó entrelaçada por bela roseira que antecipa a beleza de Sara, uma neta que ainda não nasceu; em um vaso tenho duas cores de uma mesma planta para honrar um casal de primas Valéria e Denise pela longevidade da relação marital e outras lições; tenho um kroton com o nome da amiga Edna; tenho uma hortência azul com o nome da eterna, bela e sensual Porta Estandarte Onira Pereira; tenho a Acácia Mimosa que homenageia a cunhada e comadre Lúcia. Ao regar cada uma delas, uma reza, uma lembrança, sem definir se é por mim ou é por elas. Ha, também, uma hera trepadeira com a cara da gêmea da Regina de quem não gosto muito de lembrar o nome. E assim vai.
Certa feita o verão brandia o Sol glorioso nas alturas me atingindo, porém, como venenosos espinhos, visto duvidosas intenções. Numa sombra ardente, a tia Chininha observava a sofreguidão de um escavocar a terra para um replantio. Água, barro, suor, obstinação para arrancar uma raiz. Cansadinho pra torinha pós almoço, tudo se confundia no que parecia simples falta do que fazer. Para estimular meu serviço ela lembrou meu avô Paulino Carlos da Silva, jardineiro em Porto Alegre à época em que a Colônia Africana de onde foram expulsos nos anos 30/40, passava para as mãos dos “não negros”. Após histórico ressentido pelo que deveria ser sua Redenção, ela empregou tom de súplica chorosa para pedir:
– Bota um pouco mais de competência nisso aí, meu filho esquisito! Tá?!
Noutra feita em panorâmica no jardim, estacionou sobre minha amada churrasqueira. Amo minha churasqueira como tudo que tem lá vez que tudo construí usando líquidos que jorravam do meu corpo. Minha churrasqueira é tipo “quem ama o feio bonito lhe parece”. Aquela que mente que me ama há meio século promete incinerar ali, um dia, ácaros e alfarrábios dos escombros do meu cantinho solitário onde destilo sonhos e segredos que escondo de mim mesmo. Pois a Tia Chininha, do alto de seu orgulho pretão de raça pura que nunca capitula, antes de anunciar sua despedida temporária vez que outros parentes – a requisitam – fixou em mim olhos multi cromáticos de nega véia que não morre hoje e para que eu calculasse nossa diferença, e sem olhar meus olhos estampou sorriso sarcástico, explicitamente mordaz, para dizer e depois pigarrear e tossir ao gargalhar como uma pomba, que a exemplo do que eu fizera nas plantas, vasos e coisas em geral, sobre minha churrasqueira eu deveria a por uma inscrição com os seguintes dizeres:
– Monumento À Coisa Mal Feita.
José Alberto Silva.