Colunistas

O retrato

Aos poucos, o halo de luz que se compunha na janela foi perdendo o vigor. Passavam das sete horas, logo, logo, seria noite e encerraria meu turno na vigília ao doente. Naquelas horas, o quarto de hospital, mesmo amplo, era impregnado de uma atmosfera enjoativa e áspera; o ar tornava-se espesso, a claridade da lâmpada de cabeceira desmaiava cores e formas. Na luz opaca, eu temia que a morte de meu avô chegasse sem alardes. Temia ou desejava. Para afastar este pensamento, abri minha carteira e divisei o retrato de um moleque de uns cinco anos, cabelos lambidos à base de brilhantina, envergando suspensórios sobre a camisa listrada.

Chovia muito na véspera daquela Sexta-feira Santa. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam a São Jerônimo, Triunfo e General Câmara, de tão quietas e desertas, a aparência de cemitérios abandonados. O vapor de Mestre Dário, o Oswaldo Aranha, enfrentara com valentia a correnteza do Jacuí. Há muito escurecera quando a embarcação, finalmente, enveredou para o rio Taquari, por onde alcançaria o embarcadouro da cidade a que dera o nome. 

No cais, apesar do dilúvio, ele lá estava – sentinela imbatível –, meu avô, Nenê Agra, a bordo do Renault Dauphinne estrategicamente estacionado -, à nossa espera.

O casarão avoengo era um festival de odores indescritíveis: o oleado dos móveis antigos, os jogos de cama lavados e engomados, a goiabada recém-feita por minha avó em tachos de cobre. De resto, sob protestos, era direto para a cama, que a noite já ia alta. Meu avô, para me amenizar a pertinácia, prometia, para o dia seguinte, antes que os demais netos chegassem, uma ida ao orquidário para mostrar-me os novos espécimes de sua coleção e as medalhas mais recentes, fruto de premiações nas exposições de suas orquídeas.

Na companhia de meu avô, fruía do suave e curioso prazer em aspirar a fragrância da fumaça do crioulo, e do fumo caprichosamente desbastado e enrolado na folha de palha. Rir dos “causos” por ele narrados, com fina ironia, de gafes e trapalhices de alguns confrades da aldeia. Ele fora de quase tudo um pouco: proprietário do primeiro “carro de praça” da cidade, agente do Banco Nacional do Comércio, plantador de acácias, juiz distrital interino, músico de fino ouvido e, ao lado das belíssimas orquídeas, talentoso retratista, sua grande paixão.

Fora em nome desta que, numa certa manhã, decidiu me fotografar.

Banho tomado, minha mãe empastou-me os cabelos e me vestiu com roupas domingueiras – uma camiseta de malha com listras horizontais, calças curtas, seguras por vistosos suspensórios. Vô Nenê já montara os petrechos. Assentei-me no pequeno mocho de cozinha. Quem intentou, debalde, me fazer sorrir? E paciência não constava dos atributos de meu avô. Com expressão de réu com que sentara na banqueta, permaneci até o espocar da lâmpada de magnésio.

Nos feriados prolongados como aquele, a casa, após o almoço, era invadida pelo alarido dos netos, a despeito dos clementes pedidos de Vó Dorala, de que nos mantivéssemos em silêncio, afinal a sesta era sagrada para o nosso avô. Aos mais taludos, então, era permitida a incursão à Lagoa Harmênia. Para alívio de todos, o descanso de Vô Nenê estava salvo.

Olhei uma vez mais o retrato que evocara estas recordações. Guardei-o e olhei com ternura o vulto de meu avô que parecia imerso num sono de paz. A porta do quarto se abriu; era meu pai que chegava para me render. Disse-me que, dali a dois dias, o avô voltaria para Taquari.

Fui até a cabeceira do leito e depositei na fronte de meu avô um beijo de despedida, com a quase certeza de que, dali para diante, só o teria em lembranças imorredouras.

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