490 anos da Reforma Protestante! II
Entrevista a Paulo Hebmüller
Jornalista – São Paulo
pauloeh@uol.com.br
– Quem é Lutero hoje, 490 anos depois da Reforma da Igreja, iniciada por ele em 1517?
Walter Altmann – Como acontece com os personagens históricos de modo geral, cada época tem a sua imagem de Lutero. Algumas figuras salientes ao longo da história foram naturalmente a figura do Reformador da Igreja, às vezes associada à figura do rebelde contra as instituições eclesiásticas do seu tempo. Há a figura do campeão da liberdade de consciência, e em algum momento quase se cultuou na Alemanha a figura de um representante da nação alemã, que na época de Lutero ainda era muito dividida, com inúmeras unidades políticas independentes. Não há dúvida de que seu impacto maior e mais duradouro foi na Igreja cristã. A rigor ele propugnava pela renovação da Igreja, de acordo com parâmetros originais bíblicos, mas, contrariamente à sua vontade, surgiu uma Igreja Luterana. Lutero tinha a ousadia de se posicionar diante das mais diferentes áreas, às vezes de forma problemática, mas outras vezes de forma desafiadora e inovadora. É uma figura histórica que marca o caminho de transição da época feudal para a modernidade.
– Como entender o conceito de Lutero sobre a liberdade do cristão?
Altmann – É um conceito particularmente relevante para o contexto latino-americano atual. Não era uma liberdade arbitrária, porque sempre estava conectada com uma responsabilidade na convivência com o semelhante, portanto também vinculada a uma responsabilidade social. Lutero advogou uma profunda reforma do sistema educacional de seu tempo, além de medidas de ajuda social a pessoas empobrecidas. O conceito de liberdade associado a uma responsabilidade social me parece um legado importante. A liberdade também é importante internamente para as igrejas, porque muitas delas têm uma característica de predeterminar o que os fiéis podem ou devem fazer. A perspectiva que Lutero abriu foi uma orientação às pessoas para que no desenvolvimento de sua fé, e portanto de sua consciência, tomassem as decisões que considerassem compatíveis com o exercício dessa fé.
– Lutero teria que ser redescoberto tanto na Igreja quanto na sociedade?
Altmann – Acredito que sim. Existem naturalmente lados mais controvertidos da sua atuação, e esses às vezes têm sido destacados quase que com exclusividade, negligenciando outros aspectos. Por exemplo: a sua posição na Guerra dos Camponeses (1524 – 1525) é algo muito controvertido. O que é característico de Lutero é que ele não se omitiu, e esse é o dado positivo. Ele não recuou num recôndito tranqüilo de sua religiosidade, mas achou que deveria dizer uma palavra naquele momento. Desde o começo ele defendeu os direitos legítimos dos camponeses e admoestou os príncipes, embora tivesse chegado, num estágio mais avançado da polêmica, a uma exortação muito contundente às autoridades e aos príncipes para reprimir a revolta camponesa. Mas Lutero se posicionou visceralmente contra o uso da violência e contra a associação do uso da violência a certo padrão religioso – ou seja, Lutero era contra qualquer tipo de guerra santa. Isso também é válido para as tensões em nível mundial nos dias de hoje, em que inclusive grupos religiosos são protagonistas ou acabam sendo usados nesse campo. Ainda hoje é válido e necessário o conceito de Lutero de que não pode haver uma guerra santa e de que todas as reivindicações, ainda que legítimas, devem ser discutidas no âmbito da razão humana e da solidariedade social e não podem ser impostas pelo uso de violência nem legitimadas com valores religiosos.
– Lutero também manifestou preocupação com o avanço dos turcos, assunto de certa forma ainda em pauta hoje nas tensões entre o Ocidente e o Islã.
Altmann – É uma boa lembrança. Mesmo que contemplasse a hipótese de que as forças turcas pudessem assumir o domínio sobre toda a Europa – elas chegaram às portas de Viena -, Lutero recusou qualquer espírito de Cruzada e qualquer consideração de guerra santa. Ele exortou a que a cidadania resistisse, mas sempre advertiu que os cristãos deveriam ter um relacionamento respeitoso com os representantes de uma outra fé, no caso à muçulmana.
– Paradoxalmente, Lutero se manifestou violentamente contra os judeus num determinado momento.
Altmann – A relação de Lutero com os judeus tem uma grande dose de ambigüidade. Num primeiro escrito intitulado “Acerca do fato de que Jesus nasceu judeu” (1523), ele teve palavras muito claras de defesa da comunidade judaica. Num estágio posterior, já para o fim de sua vida – e os pesquisadores especulam quais as razões que moveram Lutero a essa mudança de posicionamento -, ele publicou um escrito absolutamente lamentável, que de forma alguma podemos legitimar e defender, em que há elementos claros de discriminação contra os judeus e exortações às autoridades para que limitassem os seus direitos, ainda que – e isso merece ser lembrado – jamais exortasse ao extermínio. Nós, que somos de uma geração pós-holocausto, sabemos que a Alemanha nazista perpetrou esse terrível crime, às vezes até se reportando a Lutero, mas nesse particular de forma ilegítima. Uma comunidade luterana deve se sentir perpetuamente em dívida para com a comunidade judaica em função desse comportamento tardio de Lutero, e deve se reportar muito mais àquele escrito original de 1523, que era uma palavra de defesa dos judeus.
Revolucionário ou conservador?
– Em 1967, nos 450 anos da Reforma, a revista Time ouviu vários especialistas sobre Lutero e o definiu como revolucionário espiritual, mas conservador político, chamando a atenção para alguns de seus paradoxos. O senhor concorda com essa visão?
Altmann – É uma tese advogada por mais pessoas, inclusive no Brasil. Leonardo Boff tem um artigo muito interessante em que também defendeu uma variante dessa tese de que Lutero seria um inovador e renovador na Igreja, contudo conservador político. Porém, devemos considerar que no século XVI não havia essa separação entre Estado e Igreja, ou entre secular e religioso, da forma como a conhecemos a partir da modernidade. Na medida em que alguém advoga uma mudança tão radical no âmbito religioso, como Lutero fez, num regime que na época tinha uma forte tutela do religioso sobre o secular, inevitavelmente há repercussões de renovação também no âmbito secular. Essa tese, portanto, deve ser matizada. É verdade que Lutero defendeu também a necessidade de um respeito às autoridades constituídas, o que poderíamos chamar de um traço conservador. Mas classificá-lo in totum como conservador no âmbito político não faz jus ao fato de que uma renovação tão profunda no religioso imediatamente tinha conseqüências políticas. Há exemplos concretos que dificilmente poderíamos classificar como traços conservadores. Por exemplo, o seu empenho na área da educação: Lutero advogou pelo ensino universal e admoestou as autoridades a manter escolas para todos os cidadãos, incluindo as meninas, que não estudavam. Em suma, não podemos reduzir a uma fórmula simples o impacto que Lutero teve sobre as instituições e a organização política e social de seu tempo.
– Na reflexão teológica de Lutero, por exemplo sobre a doutrina da justificação pela fé, o que se mantém como mais forte e relevante nos dias atuais?
Altmann – A ênfase de Lutero foi de que a nossa salvação – justificação, pelo termo usado na época – é por graça e não poderia ser adquirida por conquista ou mérito nosso, e tampouco comprada. Esse aspecto da gratuidade do que Deus nos dá em última instância, como sentido e destino último de nossa vida, continua relevante. Ainda estamos cercados por propostas que tentam de certo modo comercializar ou quantificar as bênçãos divinas, normalmente condicionando isso a algo que deveríamos fazer de nossa parte, como alguma ação de benemerência, ou uma contribuição financeira muito pouco espontânea. Ser libertado desses traços de comercialização da salvação por uma mensagem que diz que nesse particular Deus a concede gratuitamente e então nos convoca ao serviço ao próximo – isso me parece uma mensagem que continua relevante para a sociedade e para a vida das igrejas.
– Como o senhor diz, de certa forma vivemos uma época em que estamos voltando à venda da salvação. Há quem defenda, dentro e fora das igrejas, que é preciso vir um novo Lutero ou uma nova Reforma. O que o senhor pensa disso?
Altmann – O próprio Lutero cunhou a expressão “Igreja reformada sempre em reforma” (Ecclesia reformata et semper reformanda est). Lutero seria o primeiro a combater qualquer tentativa de estratificar e imobilizar aquilo que aconteceu em seu tempo através de sua ação. Aliás, em grande parte ele mesmo se surpreendeu, a tal ponto que atribuía aos desígnios de Deus o fato de que o que dizia um monge agostiniano de uma pequena localidade alemã tivesse uma repercussão tão universal. Ele apostava que sempre de novo Deus suscitaria pessoas que dessem um testemunho vigoroso diante de necessidades internas da Igreja e da sociedade. Os nossos tempos são muito diferentes. Temos no mundo ocidental uma separação muito forte de Igreja e sociedade, do secular e do espiritual. Uma renovação interna da Igreja já não vai ter aquele impacto social que a renovação de Lutero teve. Hoje há necessidade de reforma permanente das igrejas, que pode ser vista como uma volta às próprias origens espirituais na vida, na prática e da pregação de Jesus Cristo, e portanto pode ser contestadora das estruturas eclesiásticas. Mas há também uma necessidade vigorosa de que valores éticos de solidariedade e de fraternidade que provêm dessas mesmas fontes de Jesus sejam colocadas como oferta e como desafio para a sociedade.
– O perigo de ficar clamando por um novo Lutero seria, no caso do Brasil, vermos cada vez mais novos “apóstolos” e “profetas” pipocando aqui e ali, além dos que já temos?
Altmann – Concordo plenamente. Vivemos um tempo de pluralismo religioso e também de muitas lideranças religiosas, algumas mais íntegras, outras mais oportunistas. Lutero deixou muito claro que não queria que seu nome fosse valorizado, mas sim que os cristãos devem seguir a Cristo. É isso o que vale e o que se deve fazer, em vez de focar na personalidade de lideranças. Lutero seria o último a advogar que houvesse um novo Lutero. Ele jamais teria sonhado uma realidade como a que vivemos hoje, com essa pluralidade de igrejas, uma delas chamada Luterana. Ele sonhava com uma Igreja que, em Reforma permanente, permanecesse fiel àquelas origens evangélicas. Até o fim de sua vida ele se considerava simplesmente um pastor da Igreja de Jesus Cristo na localidade de Wittenberg, onde morava, e não o chefe de alguma denominação.
Religião, ceticismo e modernidade
– Atualmente há um discurso racionalista e cético de certa forma culpando as religiões pelas guerras e conflitos humanos. Como o senhor analisa esse fenômeno?
Altmann – Em primeiro lugar, as igrejas devem reconhecer com realismo que não são isentas de culpa por crimes perpetrados ao longo da história. Mas talvez devêssemos considerar a palavra de Jesus: “Aquele que não tiver pecado que lance a primeira pedra”, porque em nome da razão, da ciência e de ideologias políticas também se perpetraram muitos crimes. Do ponto de vista teológico, diríamos que se revela nesse comportamento a pecaminosidade do ser humano, que se expressa de muitas formas, incluindo a violência, também no seio das igrejas, mas não exclusivamente e nem primordialmente nelas. Creio que não se trata de quantificar quem tem mais culpa. Trata-se de detectar, seja a partir de fontes humanistas ou das espiritualidades religiosas, aquelas forças que nos conclamam a uma convivência fraterna entre os seres humanos, respeitando as suas diferenças e convicções e advogando por valores comuns de preceitos éticos para a convivência. Acho que é inglório ficarmos discutindo quem tem mais culpa quando há tantos desafios pela frente em relação àquilo que positivamente devemos realizar em conjunto.
– Ao mesmo tempo, cresce o espaço para um misticismo difuso e talvez barato, com o sucesso de livros como O segredo, a emergência de uma espécie de pensamento mágico, feiras místicas em shopping centers etc. Como o senhor analisa essa realidade, em conjunto com a secularização e o ceticismo?
Altmann – Entendo que a convivência de uma pluralidade de opções religiosas com convicções muito secularizantes é uma característica da própria pós-modernidade. Num sentido mais fenomenológico poderíamos dizer que as tendências secularizantes são uma variante da pluralidade religiosa, sobretudo quando se advogam alguns traços tendentes a uma pretensão universal ou absoluta, como se elas fossem a única opção legítima. Nesse contexto, o interesse pelo místico revela que o ser humano anseia por uma dimensão mais profunda da razão de existir. A pergunta pelo sentido da vida e sobre como podemos expressá-lo com nosso íntimo, nosso coração e nossa fé é um traço característico do ser humano. É verdade que a busca do misticismo também revela uma grande dose de suspeita em relação às instituições religiosas e reforça a idéia de que no nosso íntimo poderíamos encontrar uma saída que não tenha a precariedade das instituições. Creio que aí reside um equívoco das opções místicas, porque a limitação e a falibilidade humanas se revelam também no íntimo do indivíduo, e não apenas nas formas institucionais e estruturais da convivência.
Ecumenismo e pentecostalismo
– Como o senhor analisa o cenário religioso brasileiro, com o crescimento pentecostal e uma certa estagnação das igrejas protestantes históricas?
Altmann – O crescimento das igrejas pentecostais é um fenômeno não apenas brasileiro ou latino-americano, mas quase universal, com várias facetas impossíveis de reduzir a um fator único. É um movimento multifacetado, muito diversificado e com desdobramentos inclusive para o neopentecostalismo. Ele tem entre outros componentes uma característica de adaptação aos nossos tempos, com essa procura de novas possibilidades. Há um resgate importante do componente mais emotivo da fé: um grande show de música pop não se distingue muito de um grande evento pentecostal ou neopentecostal, portanto toca as mesmas cordas íntimas das pessoas e as motiva. O fluxo migratório no mundo é crescente, as pessoas ficam desarraigadas do seu ambiente original, e a forma como as igrejas pentecostais se organizam e se mobilizam, elas próprias migrantes em muitos sentidos, faz com que obtenham uma grande adesão. Nesse aspecto, é preciso haver uma reflexão autocrítica das igrejas históricas: até que ponto elas não se imobilizaram nas suas estruturas e ficaram em desvantagem em relação à proposta pentecostal?
– Mas há também aspectos a criticar…
Altmann – Sem dúvida. Há o fenômeno de aproveitamento dessa disposição das pessoas, além de serem feitas promessas às vezes bastante fáceis que não poderão ser cumpridas. Em todo o movimento pentecostal e neopentecostal há pessoas que saem frustradas por expectativas que não se cumpriram. O resgate e o acompanhamento dessas pessoas é uma tarefa importante para as próprias igrejas pentecostais, mas também para as igrejas históricas.
– Quando um pastor diz que ele ou sua oração vão “determinar” que Deus faça isso ou aquilo, Lutero não se revira na tumba?
Altmann – Acredito que muitas dessas propostas realmente atrelam os fiéis à pessoa do líder. Essas igrejas têm uma facilidade muito grande de se subdividir quando aparece uma nova liderança. Surge uma espécie de disputa e cada novo líder procura se exceder para ter uma proposta mais atraente e mais radical que o outro. Mas Lutero tinha uma perspectiva que a seu modo é relevante para os dias de hoje, que tradicionalmente se chama Teologia da Cruz. Ela diz que não se pode esquecer que a religião cristã está centrada não numa proposta de poder, mas parte de alguém que sofreu e foi levado à cruz. Portanto, seus seguidores são chamados a tomar sobre si a cruz em serviço a outras pessoas. Essa dimensão não é suficientemente considerada em propostas religiosas que se caracterizam mais por ufanismo e por um espírito glorificante.
– O cenário ecumênico nacional sofreu percalços como a saída, no ano passado, da Igreja Metodista dos organismos ecumênicos em que a Igreja Católica está presente. Como está essa situação hoje?
Altmann – Esse espírito da fragmentação atinge também o movimento ecumênico, mas isso não diminui a relevância da proposta ecumênica. Ao contrário, a torna mais necessária e mais urgente. Como ilustração, podemos ver a situação do Oriente Médio. É extremamente importante que as religiões irmãs – cristianismo, judaísmo e islamismo – encontrem elementos de convivência para poder contribuir para uma paz duradoura e justa. A fragmentação constante entre igrejas e denominações não pode ser apresentada como algo ideal. Ao contrário, deve haver o maior entendimento possível. A diversidade de propostas, todas elas em nome do mesmo Cristo, acaba tirando a credibilidade de todas. Um dos obstáculos que o movimento ecumênico enfrenta hoje é uma tentação de cada uma das denominações de se recolher para dentro de si mesma, mais do que de se abrir para a cooperação. Essa é uma tentação que deve ser combatida. Há também declarações de diferentes igrejas que tendem mais a acentuar as diferenças do que as possibilidades de cooperação. Para quem tem convicção ecumênica, é mais um desafio a ser superado. Devemos num espírito bíblico buscar permanentemente o diálogo ecumênico. A saída da Igreja Metodista me entristece e eu a lamento. Creio que haverá um caminho de superação dessas dificuldades, porque a contribuição metodista para o movimento ecumênico tem sido muito significativa.
– As igrejas pentecostais e neopentecostais têm sido convidadas para esse diálogo ou elas preferem não participar até como estratégia para marcar diferença no “mercado religioso”?
Altmann – De modo geral, o movimento pentecostal não tem grandes estruturas de organização e tem sido tradicionalmente avesso à cooperação ecumênica. Contudo, há mais e mais indícios no mundo pentecostal de que a questão da unidade se torna relevante. Enquanto a palavra “ecumenismo” é vista de forma muito negativa por esses grupos, o tema da unidade, que na verdade é o coração do ecumenismo, se torna mais e mais relevante. Algumas avenidas estão se abrindo.
Tivemos agora no início de novembro em Limuru, perto de Nairóbi, no Quênia, o primeiro Fórum Cristão Global, em que houve participação de todas as famílias confessionais da cristandade – desde as igrejas ortodoxas em seus vários ramos, a Católica, as protestantes históricas e com claro compromisso ecumênico, as protestantes chamadas evangelicais, vinculadas à Aliança Evangélica Mundial, de linha mais conservadora, e as pentecostais também. Aliás, isoladamente visto, a representação pentecostal foi a mais numerosa nesse Fórum. Muitos participantes sentiram esse encontro, em sua abrangência sem precedentes, como verdadeiramente um marco histórico. Ou, seja, estão se abrindo possibilidades de um diálogo, não tanto de forma institucionalizada, mas sim como um intercâmbio de experiências e de convicções de fé. Isso constitui uma significativa plataforma de encontro e diálogo, a ser difundido e aprofundado no futuro.
– O senhor disse numa conferência que um projeto hegemônico e o Evangelho são incompatíveis. Dentro desse contexto de concorrência religiosa, a tentativa de imposição de um projeto hegemônico fica mais exacerbada?
Altmann – Tradicionalmente a Igreja Católica teve um papel preponderante como religião oficial na América Latina, e quase a totalidade da população se tornou católica ou foi levada por diferentes meios ao catolicismo. De parte evangelical e pentecostal, às vezes há o discurso de “conquistar” o Brasil ou a América Latina (ou o mundo) para Cristo, entendendo-se que isso ocorra na forma como Cristo é cultuado no próprio movimento evangelical ou pentecostal. São manifestações de um desejo de representar privilegiadamente a religiosidade do povo. Temos que aceitar a pluralidade, a convivência e a integridade das diferentes propostas e procurar o diálogo e a cooperação em respeito mútuo.
Diálogo com a Igreja Católica
– Como fica a relação do movimento ecumênico com a Igreja Católica depois do documento de julho no qual o Vaticano declarou que a única Igreja de Cristo “subsiste na Igreja Católica”?
Altmann – O diálogo e a cooperação com a Igreja Católica seguem. Naturalmente a forma com que esse documento da Congregação para a Doutrina da Fé foi divulgado e a repercussão que teve na mídia causam algumas dificuldades práticas, mas isso não altera em nada o compromisso ecumênico que devemos ter, porque ele parte de uma convicção bíblico-teológica de que é o que Jesus Cristo deseja, e nesse sentido a Igreja Católica também o afirma. É verdade que nossa compreensão de Igreja é diversificada. O Vaticano o expressou, mas também as protestantes ou evangélicas e pentecostais não quereriam afirmar que são Igreja exatamente da mesma forma que a Igreja Católica o é. Contudo, creio que devemos fazer um esforço para colocar as nossas diferenças no bojo dos avanços que o movimento ecumênico já registrou e que nos dão motivos para ter esperança de que à frente possam ocorrer novos avanços. Há áreas significativas em que no passado tínhamos grandes divergências teológicas que foram amenizadas ou mesmo superadas. As diferenças hoje se tornam mais candentes justamente na compreensão do que é Igreja e de como ela se organiza. O documento da Igreja Católica trouxe isso à tona e é um tema que deve ser tomado no contexto do diálogo ecumênico (por exemplo no âmbito da Comissão de Fé e Ordem, do Conselho Mundial de Igrejas, comissão da qual a Igreja Católica também é membro). A convicção luterana é de que o conceito de Igreja não se caracteriza tanto por uma compreensão quantitativa dos vários ou muitos elementos que no seu conjunto perfazem a Igreja, mas sim num sentido qualitativo, ou seja, de pessoas que se reúnem em torno de Jesus Cristo e do seu Evangelho. Esse é o núcleo essencial do ser Igreja, e esse núcleo nós reconhecemos plenamente na Igreja Católica e nas igrejas pentecostais. Não podemos negar, nem à Igreja Católica nem às pentecostais, a designação de Igreja, como muito menos negar o termo de irmão ou irmã na fé em Cristo, o que os católicos tampouco negam.
– O senhor diria que esse documento representa um recuo, enquanto a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada por católicos e luteranos em 1999, foi um avanço?
Altmann – São duas esferas diferentes. Mas o avanço na questão da Doutrina da Justificação, expresso no documento de 1999 depois de algumas décadas de diálogo, é um exemplo significativo que pode nos servir de modelo e inspiração para um diálogo perseverante também em torno do que é a Igreja.