Café com Chuva – José Alberto Silva
Voltam à superfície da terra pois desenterram-se com as próprias mãos, meus irmãos, parentes e amigos sepultados com raiva numa chuvosa mina de cominações.
Vejo retornarem mudados do passado de preocupações. Afastei-me como se tivéssemos ido para planetas diferentes, mas a maioria ficou em Porto Alegre.
Transmudaram-se. Redimensionaram pensamentos, palavras, ações, e questiono razões para abandonarem abusos? Sem a embriaguez do efeito do conhaque na veia ou insones por dias por coquetéis de explosão, pareciam incorporados de elementos da terra que não têm nome. Após lancinantes sirenes do SAMU não deixavam esperanças de retorno. Mas retornaram.
Parece que o traumatizado era eu porque não me desvencilho de nosso passado familiar; tenho presente o que me levou a esse afastamento equivalente a uma vida inteira. Fui cuidar de mim sem ser atrapalhado por eles e eles fizeram o mesmo. São desconhecidos nos corpos rejuvenescidos de meus familiares.
Para não dizer que não bebericavam nada, agora gostam de rodadas de uma variedade de cafés. Ora é café com chantilly, ora é o café suave americano, ora é o encorpado expresso, o pingado brasileiro, com leite, cappuccino e outros. Se havia alguma coisa errada comigo por agir diferente deles, agora me sentia ainda mais deslocado pelo espanto que me causavam.
A irmã mais velha desprezava a família dopada, desde a mãe. Espumava raiva de nossos vícios e erros. Filha de santo nos estertores de um culto a “pais” que abandonam filhos por vícios e erros.
Duvidávamos dos santos ausentes por trezentos e oitenta e oito anos de escravização dos negros que os trouxeram da África. Sem espiritualidade, sem paz e harmonia dissertava atans como os dedicados a deuses gregos e romanos. Tambores do samba, rock, reggae e tango invocam melhor os fundamentos da terra, mesmo com letras profanas como dizia Carlos Cachaça.
Ela agora oferece café Mocaccino e Tailandês e irradia luz em gestos como “passes” de boa energia.
No convívio com meus irmãos, lamento uma estar no Paraná, outra no Rio de Janeiro, outro em Minas Gerais. Antigamente nossa proximidade era tóxica. Parecíamos disputar corrida a um inferno encantador. Eram aborrecidas nossas reuniões de família na Cidade Baixa apesar da euforia de vários casamentos e batizados. A sobrevivência mágica se atribuía à tambores e batuques, redutos africanos da feitiçaria na porta de igrejas de párocos pedantes e criminosos que extorquiam a todos, saudosos de quando a Igreja detinha exclusividade na emissão de certidões de nascimento, casamentos e óbitos até iniciar-se a separação entre Igreja e Estado.
Nossa mãe em hospital dormitava morfina para uma irmã gritar cânticos de igreja e pontos de umbanda. O Sol bruxuleava e médicos voltavam da porta. Sorria ao ver seu pai, meu avô, sargento músico, trompetear “Il Silencio” e retornar à posição de sentido. Auto exumada conserva olhos perscrutadores.
Sem bebida é discreta como meu pai, o imperturbável Senhor Sobriedade. Causou receios quando um primo, policial militar apelidado Satã, disse que caso meu pai se aborrecesse faria uma chacina sem dizer uma palavra. Viúvo com um bebê, confiou a criança ao sogro até casar com a filha dele em 20 de novembro, lá em 1943, data que seria fixada como Dia da Consciência Negra. Odiava a Direita senzalista e a Esquerda, por nos exigir o voto, supostamente, por nos representar. Relia Malcon X e M. L. King. Se chorava, era por dentro.
O piano para o magistério de acordes inebriados de uma irmã ajudava jam sessions de loucos e artistas na Cidade Baixa. Beatles, Stones, tropicalismo, psicotrópicos, sexo nasal e orelhal. Festas, natais e reviradas de ano novo. Meu pai aconselhava só uma vez. Disse que a negrada precisa de três gerações sem drogas legais ou ilegais para limpar o sangue intoxicado como fuga ou paga pós abolição. Bolachas de vinil de Nina Simone, BB King e Cartola. Movimento negro, ditadura militar, baseado alternativo. Valia à política racial da autodestruição na vida marginal em bolsões de sangue da juventude negra. Elvis frente a sepulturas abertas, desafiava elementos da terra ao berrar hinos pela perda sucessiva de amigos.
Separei-me deles pelos seguintes motivos: o irmão que sugava endorfina desolou-se nas lágrimas que deixaria de herança; o que ria para as paredes em sinal de embriaguez, deu com a cabeça na parede como se agredisse alguém e agora toma café Irlandês. O brigão da má bebida, esquecia desafetos porque não os conhecia, um dia lhe disseram que brigara com amigos. Sentou-se num vaso sanitário e desmanchou-se em lágrimas. Outro começou bebendo um mês à fio, manhã à noite, sóbrio onze meses; depois bebeu dois meses, assim foi até beber sete meses; fez uma febre incomum e curado esqueceu que bebia. Agora treme as mãos ao tomar café com limão.
Dos meus irmãos um pintava, sentava ao piano e tocava clássicos de ouvido, outro foi parceiro de bons compositores, outra publicara livros de poesia, outra era professora de piano e participara de concertos no Teatro São Pedro; outro, quando sóbrio, recomendava Kant, Engel e Marx. Tudo a par de trabalho regular, ninguém vivia de expediente. Talentos comuns feitos para sucumbir. Talvez no silêncio de meu pai estivesse a procura de canalizar aquilo tudo. Redivivo, meu pai toma café com leite, bonito pretão, parece artista rescendendo a banho perfumado. Porém, se a família fosse achada esquartejada num amanhecer de festa, meu pai seria encontrado dormindo sem saber dizer o que se sucedera.
Os pais dos nossos netos não aceitam palpites na sua educação. Os netos são preparados para mundo diverso do deles. Avós conhecem erros repetidos e nossos filhos desconhecem os pontos onde vários padecem. Se não preparamos filhos para a Internet, celulares ou inteligência artificial, eles não sabem que no mundo de nossos netos, outros planetas serão descobertos e colonizados e o câncer terá cura. O amanhã, para relações sociais, vai extinguir hegemonias menores hoje motivo para embates mortais. Nossos filhos e o mundo seriam melhores se todos soubessem como se orientar no compasso da música das esferas que promove a liberdade.
Por sofrer da perturbosa depressão familiar eu quis retomar nossa convivência. Sei lá! Saudades talvez. Delirava em porre seco reunido com eles. Saudáveis, ponderados e afáveis, mas como em sonhos esquecia nossas falas. Foi por dentro que meu pai chorou sangue na cabeça. Com notícias recebidas de um Padre no Rio de Janeiro, ele agradecia minha irmã carioca dizendo que ela emocionava, mesmo em drogadição, na falta de companheiros de Coral, ao segurar sozinha e à capela num sincretismo à sua moda, com a Igreja silenciosa, os cânticos da Missa com sua agaivética mistura de música Católica com pontos de Umbanda conhecidos do Padre. O Padre disse saber disso e lhe recomendava resguardos.
Sonhei encontrar Deus para pedir-Lhe tirar a fala dos humanos o que causa mais mal entendidos do que compreensão. Tudo perdia o sentido. Sabes da deprê de estar na quadra dos Imperadores do Samba e sentir vontade de chorar? Era uma dor indefinida sobre todos os sentidos. Com minha mulher limonada comecei hipertensa discussão ao feitio da minha família por ela reclamar de manhã que meu fedor ardia na seu nariz sensível. Nossa discussão mostrou que a exemplo do que sucedera com eles, eu ganharia transformação para melhor:
– Atire em mim, duma vez! Atire logo!
– Atiro, sim!
– Atire, tu és varrida mesmo!
– Tu vais sofrer depois da morte, espírito sofredor!
Na Cidade Baixa doía a vontade de voltar no tempo e corrigir o malfeito. Rezávamos para reverter o decidido. Agora entendo que me afastei de cada um por vez. Ora fora por febre alta, de cabeçadas na parede; de esganiçar-se berrando cânticos cristãos e pontos de Umbanda numa igreja, depois de brigas de rua por cachaça; por saturação de morfina ou sobre um piano solitário. Eu estava desenganado! Dor do banzo colonial. Volto no tempo e em casa minha mulher adocicada diz que eu sorria musicalmente para encontrar com Deus. Bafejados pelo halo divino, inconscientes e independentes de talentos, nossos netos fazem o caminho que fizemos para a conquista do universo que lhes pertence.
Ponto central todos acorriam à Cidade Baixa. Casa cheia, silenciosa e tensa. Sem comilança, bebidas, ou corais de igreja. Luzes piscavam. Intrusos voltavam da porta. Perdemos algo além do direito à expectativas. Não gostávamos de perder ninguém, menos ainda parte de nós. A tristeza chuviscava. Alguns passavam pela cozinha em direção ao quintal, para conversas particulares, e se serviam de um café. Não se sabia se tal café no bule estaria requentado quando a gente se servia ou se se tornava sem gosto ao sairmos em busca da privacidade oferecida pelo pátio, levando a xícara para tomar um café com chuva.
José Alberto Silva