Aleph Episódio II – Sergio agra
ALEPH
Episódio II
Nasci em Porto Alegre um tempo em que a maioria daqueles que como eu, alguns anos mais tarde, perderiam a crença na República Nova liderada por Getúlio Dornelles Vargas, pela mesma razão que os maiores a haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente e não porque pensa, a maioria de nós, os jovens, viria escolher ideologia outra para sucedânea do “Getulismo”. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei o que chamavam de República Nova de Vargas tão amplamente como meus coetâneos, nem aceitei incondicionalmente a social democracia por navegar em teóricos oceanos. Considerei que esta poderia ser, podendo, pois dever ser abraçada; mas que o socialismo, sendo ainda uma ideia abstrata, não era mais digno de adoção do que qualquer outro princípio. Este culto da humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer no porvir, e não podendo crer numa ideia ainda abstrata, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a Decadência. A Decadência e a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração se pudesse pensar, pararia.
Não tomando nada a sério, nem considerando que nos fosse dada, por certa, outra realidade que não as nossas sensações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assiduamente, não só na contemplação estética mas também na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer convencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é apenas como o falar alto de quem lê, feito para dar plena objetividade ao prazer subjetivo da leitura.
“Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda”.
E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para convertê-lo na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde.
Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair ou, hodiernamente, se escreve poesias no computador. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo. Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que passa horas no computador, para se distrair do Destino, ou da menina que só tem o MP3 Player, para se distrair, sem mais nada.
Considero a vida uma pousada onde tenho que me demorar até que chegue a van ou o uber do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta pousada uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.