Episódio IX de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra
O GENERAL SABIA DEMAIS
Episódio IX de As Crônicas de Aleph
“Meu coração dói-me como um corpo estranho.
Meu cérebro dorme tudo quanto sinto.”
Fernando Pessoa
Enfim, o primeiro dia do ano letivo. Guarda-pó engomado, as quatro letras iniciais do nome do Grupo Escolar caprichosamente bordado na manga esquerda; a pasta de couro cheirando a nova; lápis, borracha bicolor, apontador de lápis, cadernos para desenhos, para exercícios de caligrafia e o quadriculado para “fazer as contas” — e que em tempo mínimo ganharam “orelhas” —, compunham meus indispensáveis petrechos estudantis.
O austero casarão do colégio, localizado numa ladeira de íngreme aclive, inusitadamente exibia ao longo do leito da rua uma das fachadas laterais. Era por esta face, através de um imenso portão de ferro, que se alcançava o espaçoso átrio e a escadaria que dava acesso ao frontispício. A edificação — se avistada do pátio de recreio, aos fundos do educandário, compreendia cinco pavimentos — era ladeada pelos altos e intransponíveis muros de pedra que a separavam do Palácio do Governo.
Fora exatamente na sala de aulas do centenário colégio que eu iria descobrir a paixão: — Maria do Carmo M.B.
Quatro anos depois Maria do Carmo não apenas mudaria para um bairro distante e bucólico: fora, em regime de internato, matriculada em colégio dirigido por austeras religiosas. Com o projeto de transferência da Capital Federa do Rio de Janeiro para o Planalto Central, a partir da construção de Brasília, os acontecimentos políticos e sociais estavam ganhando celeridade e rumos temerários. O general M.B. pressentiu que a mudança de escola e o regime de internato assegurariam a vital imperturbabilidade à formação da personalidade da filha. A clausura e a rígida orientação religiosa e pedagógica da escola atestavam o julgamento do general. Ele parecia estar bem informado, pois o preço da “exoneração” do Rio de Janeiro por Brasília não tardaria a se evidenciar.
“Varre, varre vassourinha, varre a corrupção”, entoavam os correligionários de Jânio Quadros — pejorativamente tachado pelos opositores de Vassourinha Delirante —, foi o primeiro presidente eleito a subir a rampa do Palácio do Planalto após Brasília ser inaugurada. Polêmico, seu governo pouco durou. Jânio condecorou, no dia 19 de agosto de 1961, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, Ernesto Che Guevara, o guerrilheiro argentino que fora um dos líderes da revolução cubana, em agradecimento por Guevara ter atendido a seu apelo e libertado mais de vinte sacerdotes presos em Cuba, que estavam condenados ao fuzilamento.
Este gesto fora o estopim que viria incandescer o rastilho de pólvora dos acontecimentos que culminaram no dia 25 de agosto daquele ano com a renúncia de Jânio, mudando toda a História Política do País.
Naquela manhã o Rio Grande do Sul estava prestes a aderir ao Estado de Sítio.
O vice-presidente João Goulart se encontrava em visita à China. Os militares, que temiam ver no Brasil um governo de esquerda impediram Jango de assumir o cargo como mandava a lei. O Último Caudilho Gaúcho, metralhadora firmemente segura na destra e microfone na canhota, exortava o povo para defender a Campanha da Legalidade. Filas imensas formaram-se à frente do portão do Palácio. Eram voluntários que se inscreviam para cerrar fileiras.
Naquela manhã, após ser “condenado” a três dias de suspensão por indisciplina, eu retornava da escola. A cruzar a Praça da Matriz vislumbrei a febril movimentação nas cercanias da Sede do Governo, Não pensei duas vezes: postei-me atrás do último homem que guardava a fila.
Um puxão na orelha despertou meus devaneios “revolucionários”. Avisado que fora por um cliente de minhas pretensões, o pai o carregou-me a cabresto de volta para casa. Razões não faltaram para que as comemorações de aniversário de meus onze anos fossem definitivamente sepultadas.
O sobrado amarelo agora habitado pela família M.B. na encosta de uma imensa colina na Zona Sul da cidade era um casarão oitocentista. Das janelas e da varanda do segundo piso se descortinavam o frondoso arvoredo, a imensa mata nativa que circundava a região e, mais abaixo, o liceu das religiosas cujos muros guardavam a sede da paróquia. Para não perder de vista Maria do Carmo em definitivo, aos domingos, faceiro e perfumado, em disfarçada contrição, eu presenciava as Missas na nova Paróquia onde ela, o cândido alvo de minha fascinação, representava um dos anjinhos na liturgia.
Aos sábados seguiam-se os domingos; os bondes rodavam em cima dos trilhos; os namorados passeavam de mãos entrelaçadas; as mulheres eram atentas e todos os maridos “funcionavam” regularmente, recitava Vinicius de Moraes. Antigos carnavais: pierrôs, colombinas e arlequins. A commedia dell’arte engalanava as ruas e avenidas — palcos apoteóticos. A bossa nova e João Gilberto singravam n’O Barquinho as águas do Guaíba para ver a Namorada, a Garota de Ipanema. Cely Campello tomava Um Banho de Lua e Sergio Murillo se encantava com Oh, oh que broto legal… A “Pimentinha”, soberana, florescia no Clube do Guri, Baldauf embalava corações apaixonados nos Bailes da Reitoria e The Beatles e Rolling Stones iniciavam a disputa pelas cabeças daquela geração.
Na paz estrelada das noites de longínquos verões, das janelas do sobrado amarelo, Maria do Carmo confidenciava aos astros os sonhos mais recônditos. Doía minh’alma de insuspeitado enamorado adivinhar-me alijado dos devaneios de Maria do Carmo. Eu me consumia nas labaredas do ciúme e em minhas fantasias a imaginava bailando, ao som da música em surdina, conduzida por braços outros que não os meus. Apoiado aos muros do Mosteiro eu a escudava de quimeras que somente ele via. Maria do Carmo, divindade, alçava voos a esferas inacessíveis aos comuns dos mortais. Sequer percebia a existência deste errático apaixonado. Então eu me escarrapachava no último banco do bonde, àquela hora quase vazio, e voltava pra casa, abatido, desencantado da vida. Erasmo, o condutor do elétrico, me espiava pelo espelho retrovisor. Respeitava o silêncio e a dor que o seu habitual passageiro das noites de domingo carregava em sua alma. Percebeu que o meu primeiro referencial feminino mesclara-se em luzes e sombras do Firmamento…