O piano’s bar. Balcões de cerejeira, com detalhes em couro na tonalidade dourada. As mesas cobertas por toalhas de linho em tom pastel. King Curts geme All the Way. A pista de dança vazia; tocos de cigarros pisoteados.
O bêbado, os pés descalços, ronca sobre o sofá que acompanha toda a extensão de uma das paredes. O garçom recolhe, dolente, copos e cinzeiros; o ajudante alça as cadeiras sobre as mesas, à medida que elas vão sendo desocupadas. O Homem, colarinho desfeito, gravata arriada, o paletó jogado sobre o encosto da cadeira, beberica o Royal Salute “batizado” e fuma Chesterfield.
Trajando um longo negro de musselina italiana, que não disfarça o porte à la Martina Navratilova*, ela irrompe pelo saguão do bar.
O Homem: (Ergue-se e apruma a cadeira para ela sentar) – Não entendi, sinceramente, tua atitude.
A Mulher: (Ausente qualquer resquício de maquilagem, abre uma finíssima cigarreira de marfim, com incrustações em ouro) – Dê graças ao Eterno por eu ainda ter vindo.
O Homem: (Irônico) – Às quatro da manhã?
(O garçom aproxima-se sem estender a carta).
O garçom: – Alguma bebida para a senhora?
A Mulher: (Percebe a pouca disposição do garçom. Ríspida) – Apenas troque o cinzeiro. Este mais parece uma latrina.
(O garçom atende a ordem e se retira. A Mulher dá uma longa tragada no cigarro).
O Homem: (Contendo a irritação) – Sabias muito bem que não era por mim, ou pelo Reitor, e sim por Helena. Vocês, afinal, sempre foram tão amigas, inseparáveis. Eu diria, até, íntimas, …não é mesmo?….
A Mulher: (Cortando as ponderações do Homem) –Talvez até demais para o meu gosto.
(Ela era catedrática da disciplina de Direito de Família e Sucessões. Fizera o mestrado em Direito Civil e Processual Civil e, agora, buscava o doutorado. Lecionava em três importantes universidades, e mantinha conceituado escritório de advocacia. Difícil no trato, sabia, no entanto, ser generosa para com os virtuosos. E Helena o demonstrara ser).
A Mulher: (Remexe nas lembranças) – Quando Helena foi admitida na Universidade, era imatura, recém-chegada da roça. Acolhi-a em meu Departamento, mostrei-lhe como lidar com aquele bando de idiotas e reacionários, a maioria filhos de desembargadores; freqüentam o turno da manhã, à tarde fazem estágio remunerado por um par de horas nos gabinetes dos tribunais e, à noite, mergulham em festins de clubes e choperias da moda. Ensinei Helena a preparar os esquemas de aula e a aplicar as provas de cada bimestre. Comigo, Helena realmente aprendeu a viver!
O Homem: (Tenta lembrar) – Vocês chegaram morar juntas por algum tempo?
A Mulher: (Incisiva) – Morar na mesma casa, nunca! Viajamos, sim. Estudamos. Mostrei-lhe o meu projeto com o qual iria pleitear a bolsa do curso de doutorado na Sorbonne. Quantas foram as noites que releguei os apontamentos e o computador, para escutar-lhe as confidências, a relação mal-resolvida com a família, enfim…
(O bêbedo acorda e faz dueto com Louis Armstrong em What a Wonderful World).
O Homem: (Conciliador) – Todos estranhamos tua ausência na festa, principalmente Helena, já que era a homenageada. Expliquei-lhe que não nos falávamos desde o último fim de semana.
A Mulher: (Amassa com violência o cigarro no cinzeiro) – E o que esperavas? Somente nesta segunda-feira soube que o meu trabalho fora extraviado no trajeto entre o Gabinete do Reitor e o Escritório-Geral do Consulado Francês, impossibilitando que eu pudesse enviar outra cópia em seu lugar. Enquanto isso, o de Helena era agraciado com a bolsa na Sorbonne. Sequer sabia que ela defenderá tese. E nós, que não tínhamos segredos uma com a outra…
O Homem: – Afinal, qual foi o tema do teu trabalho?
A Mulher: (Mais serena, vê o garçom conduzir o bêbedo para fora do bar) – O Direito do Companheiro Supérstite ao Patrimônio do de cujus na Relação Homoafetiva.
O Homem: (Mal consegue murmurar) – Eu não acredito!
A Mulher: (Intrigada) – O que foi?…
O Homem: (Levanta-se, veste o paletó, guarda o maço de cigarros e o isqueiro num dos bolsos e dá um último gole na bebida) – Foi esta a tese defendida por Helena.
Sinatra entoa Stranger in the Night.
* – Martina Navratilova – Ela foi a primeira atleta famosa a declarar-se lésbica para o público, no começo da década de 1980. Nascida na antiga Tchecoslováquia é a maior ganhadora de prêmios do tênis profissional, entre homens e mulheres.