Baú de brinquedos
Era uma cinza e triste tarde outonal. A chuva insistente invadia as calçadas. Da mesa aonde me encontrava, nos fundos da cafeteria, eu tinha uma visão completa do salão. Assim, pude ver quando entraste. Trajavas uma finíssima gabardina italiana e apertavas nas mãos nervosas o cabo em madrepérola da sombrinha. O maitre acompanhou-te até a mesa em que eu te esperava. Fingiste dominar tua ansiedade. Buscaste na bolsa o isqueiro e a cigarreira com incrustações em ouro e ônix negro.
Percebi o ligeiro tremor de teus dedos ao levares o cigarro aos teus lábios carmesins. Em seguida, disseste, em tom aparentemente natural, que me achaste bem e que, apesar da barba embranquecida, eu não havia mudado muito, mesmo com o passar dos anos. No mesmo tom, devolvi-te a gentileza, reparando que estavas mais bela do que nunca.
Porém, foram os olhos que, verdadeiramente, falaram por nós; foram eles que romperam eventuais bloqueios, derruíram as barreiras que pudessem ser erguidas pelos nossos mecanismos de defesa, e que, certamente, haveriam de frustrar aquele reencontro.
Como dois seres carentes e tímidos, abrimos antigos baús e fomos redescobrindo nossas antigas fantasias. Elas brotaram, concedendo às crianças em que nos transformáramos a certeza de que os sonhos ainda estavam ali, inteiros.
Saímos para as ruas não mais nos importando com a chuva intermitente, acreditando nas possibilidades; acreditando, sobretudo, que sentimentos outros ainda haveriam de explodir, ante o beijo ardente, o suave toque das línguas que nos arrepiava a pele, e a viagem de minhas mãos navegadoras pelo teu corpo. Seríamos astronautas descobrindo, extasiados, novas galáxias, outras matas e cheiros. Desvelaríamos os segredos desse sentimento até então desconhecido. Haveria a explosão da paixão represada por uma existência inteira marchetando a cama, os lençóis, os espelhos e as paredes do quarto com bilhões de suas partículas; e, em cada uma delas, a sagração daquele amor infinito.
Quando a noite sem chuva, enfim, chegasse, e o luar invadisse o quarto, encontraria, na cintilação dos nossos corpos suados, o brilho de uma constelação e a paz de um universo todo.