Enchente histórica no RS criou refugiados climáticos. É a expressão que define milhões de gaúchos que tiveram suas vidas abruptamente transformadas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul.
O fenômeno climático extremo ocorrido em maio de 2024 afetou diretamente mais de 2 milhões de pessoas em 478 dos 497 municípios do estado, forçando metade delas a abandonarem seus lares em busca de abrigo em outras regiões.
O impacto foi tão profundo que está sendo analisado internacionalmente como um caso emblemático de migração interna causada por desastres ambientais.
O professor Roberto Uebel, gaúcho e docente de Relações Internacionais da ESPM-SP, levou esse debate a um novo patamar com a apresentação de seu artigo científico Redefining Borders in the Era of Climate Change: The Case of the 2024 Rio Grande do Sul Floods, durante um evento na Universidade de Victoria, no Canadá. Sua pesquisa aborda como eventos extremos, como a enchente de 2024, não apenas desestruturam comunidades inteiras, mas também remodelam fronteiras sociais, econômicas e geográficas dentro do próprio país.
O estudo populariza e aprofunda o conceito de “refugiado climático”, caracterizando-o como qualquer indivíduo que se vê obrigado a deixar sua residência – de forma temporária ou permanente – por motivos diretamente relacionados a fenômenos climáticos como enchentes, secas, tornados, furacões ou ciclones.
Uebel afirma que o caso gaúcho é singular por dois fatores cruciais: o ineditismo e a ausência de um padrão específico de deslocamento.
“Nunca havíamos enfrentado uma enchente com esse nível de devastação. Nem mesmo a de 1941, ou a de setembro de 2023, causaram uma migração em massa e de longo prazo”, pontua. O pesquisador observa que o êxodo atingiu pessoas de todas as classes sociais, sem distinção de renda, gênero ou escolaridade.
De acordo com a análise, tanto famílias de alto poder aquisitivo quanto populações mais vulneráveis foram forçadas a deixar suas casas.
Algumas se dirigiram ao litoral gaúcho ou ao estado vizinho de Santa Catarina, enquanto outras foram acolhidas em abrigos públicos. “A enchente não seleciona suas vítimas. Quem tem recursos financeiros conseguiu se restabelecer com mais rapidez, mas quem não tem condições segue em situação crítica até hoje”, alerta Uebel.
A pesquisa ainda denuncia a falência do planejamento urbano diante da catástrofe. O estudioso critica a ausência de planos de evacuação organizados e aponta que a falta de coordenação entre municípios prejudicou ainda mais os deslocados.
“Hoje, basta chover em Porto Alegre que a cidade volta a alagar. Isso escancara a falta de preparo. Em vez de planos claros, o que se viu foi uma ordem vaga para que os moradores se dirigissem ao litoral, sem rotas definidas ou horários indicados”, relata o professor.
O documento científico propõe sete medidas para a formulação de políticas públicas eficazes. Entre elas, duas são consideradas prioritárias por Uebel: a criação de uma definição legal para o termo “refugiado climático”, que permitiria o acesso facilitado a benefícios como FGTS e auxílio emergencial; e a implementação urgente de planos de contingência e mitigação, com diretrizes claras para a proteção e realocação de cidadãos diante de futuros eventos climáticos extremos.
Enchente histórica no RS
A pesquisa de Uebel chama a atenção do mundo e lança luz sobre um novo paradigma: o da mobilidade forçada dentro do próprio país, impulsionada por catástrofes naturais. Ao redefinir as fronteiras internas do Brasil, a enchente de 2024 reforça a urgência de tratar o refugiado climático como uma realidade presente – e não mais como uma previsão distante.