Colunistas

As sombras da longa madrugada

Os anos seguintes marcariam Miguel de forma indelével para o resto de sua vida. Da vitrola movida à pilha provinham os ritmos das reuniões dançantes. Beatles e Rolling Stones disputavam a cabeça daquela geração. As festinhas eram regadas a cuba-libre ou simplesmente Coca-Cola. Fumava-se Minister, mascavam-se chicletes e, na sala a media luz, ao som das canções de Peppino di Capri e Sergio Endrigo, escutavam-se os suspiros e se adivinhavam carícias entre os dançarinos. A revolução sexual ainda não fora assimilada.

Aos rapazes restava, findos os bailinhos, acorrerem ao sobrado da Judith, conhecido serralho na rua José do Patrocínio, para os lados da Praça Garibaldi; aos menos afortunados, o remédio único e imediato para escroto dolorido: voltar para casa e trancar-se no banheiro.

As meninas idolatravam James Dean. Fotos do ator enfeitavam os arquivos escolares. Laquê nos penteados caprichosos, elas arrasavam nos bailes da Reitoria. As mais afoitas simulavam ir para a casa de uma colega estudar; na verdade, escapuliam para as suspeitosas reuniões dançantes do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina, quase ao lado do velho necrotério. Outras, na garupa das Lambrettas, sonhavam com o Mustang cor de sangue, roda tala-larga e motor envenenado.

As matinês dos domingos no Imperial e no Guarani: Quando Setembro Vier, iremos, em Ritmo de Aventura, saber Por Quem os Sinos Dobram?, depois, gozar as Férias no Havaí e avistar do alto do Trapézio os Pássaros, pois O Sol é Para Todos e Os Inimigos Não Mandam Flores para Goldfinger, pois O Espião que Veio do Frio, enquanto Assim Caminha a Humanidade, entre Gritos e Sussurros, para 2001, Uma Odisseia no Espaço, … “Al di la de le stelle”… à luz de velas do Candelabro Italiano. Missa das dez na Catedral. O guru chamava-se Sartre, e o apóstolo da Grande Recusa, que anos mais tarde terminaria formando o exército de um homem só, Marcuse.

Miguel lembrou-se de Clara. As lembranças o transportaram para a noite em que jogavam cartas com Vandick e Walquíria, filhos do professor Wladimir Cerqueira. De súbito, a porta de entrada do apartamento do professor Cerqueira rompera-se com um estrondo e uma patrulha da Polícia do Exército – comandada por um certo Capitão Silveirinha –, indiferente à presença dos quatro jovens, arrastou o professor para o interior de um camburão da PE estacionado sobre a calçada do prédio.

Levado para o Rio de Janeiro, o professor servira de cobaia a demonstrações práticas de torturas em aulas ministradas a elementos das Forças Armadas, na Polícia do Exército da Guanabara. Wladimir Cerqueira fora brutalmente espancado por um capitão chamado Jostafá Inocêncio de Alcânfora e, depois, obrigado a sentar-se numa cadeira, tipo barbeiro, na qual havia sido amarrado com correias revestidas de espumas, além de ter outras placas de espuma cobrindo seu corpo. Prenderam todos os seus dedos e ligaram à língua, aos ouvidos, olhos e pulsos alguns fios elétricos, iniciando-se uma série de choques.  Ao mesmo tempo, outro torturador, com um bastão elétrico, provocava choques no entre pernas do professor.

A tortura passou, com o Regime Militar, à  condição de “método científico”, incluída em currículos de formação de militares. O ensino deste método de arrancar confissões e informações não era meramente teórico, era prático. Fora o policial norte-americano, Dan Mitrione, posteriormente transferido para Montevidéu, onde acabou sequestrado e morto, quem introduziu, nos primeiros anos do Regime Militar, este macabro método de aprendizado em cobaias. Ele utilizava mendigos recolhidos nas ruas para adestrar os milicos. Seviciados em salas de aula, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as várias modalidades de criar no preso a suprema contradição entre o corpo e o espírito, atingindo-lhe os pontos vulneráveis.

A cena de violência naquela noite testemunhada pelos quatro jovens, que teria o desfecho trágico, contribuiu, irreversivelmente, para o destino de confronto ao regime de exceção. Vandick, anos mais tarde, seria morto no Araguaia, sem jamais ter notícias do pai. Clara e Miguel não puderam permanecer, a partir daquela noite, na postura de alienados e omissos.

Aconteceu tudo em 1968: os estudantes se revoltaram e armaram barricadas em Paris, não para tomar o poder, mas para dele debochar. Outra ordem caduca começou a ser contestada no Leste Europeu com a Primavera de Praga, que os tanques do império soviético sufocaram. Por toda a parte a autoridade viu-se desafiada: em casa, na escola, na cama, no trabalho, nos palácios. Esse mesmo ímpeto varreu a América, onde a geração nascida no pós-guerra impunha seus valores. Se Bob Kennedy e Martin Luther King tombaram em poças de sangue, as minorias partiram para ocupar os espaços que imaginavam lhes pertencer. Já o Brasil, parou.

Com os estudantes primeiro nas ruas, depois nas cadeias, o regime trancou o país. A passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro, um discurso infantil do deputado Márcio Moreira Alves, propondo o boicote ao sete de setembro, irritou os militares e foram a gota d’água para o advento do AI-5. Com ele, Costa e Silva fechou o Congresso, cassou mandatos e censurou a imprensa. Começava uma longa ditadura. A tortura, que não constava do texto do AI-5, continuava regendo a escrita dos arquivos confidenciais dos quartéis.

Vetou-se a impetração de habeas-corpus, pois o Ato Institucional proibia a apreciação judicial desta garantia nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Sem direito a habeas-corpus, sem comunicação de prisão, sem prazo para a conclusão do inquérito, o preso ficava absolutamente indefeso nos órgãos de segurança, desde o dia do sequestro até quando passasse à Justiça Militar. Indefeso e incomunicável, era obrigado a confessar aquilo que os seus interrogadores queriam, depois de longas sessões de tortura. Obtidas as confissões, os inquéritos eram “legalizados” e as prisões comunicadas.

Miguel engajou-se na luta contra o regime então vigente. Como membro do CAJU – Centro de Atuação Juliana (que serviria de fachada ao movimento, pois o Grêmio Estudantil do Colégio Júlio de Castilhos era politicamente inoperante e reacionário) –, mimeografava e promovia a distribuição de panfletos nas passeatas de protestos, o que lhe resultou em hematomas pelo corpo todo devido às pancadas de cassetetes.

Detido, conheceu, nos porões da velha e fétida delegacia do Batalhão de Choque, na Rua Riachuelo, o “telefone” – golpes violentos e simultâneos de mãos espalmadas nos ouvidos –, aplicados pelo mastodonte e salivante “Cabo” Olegário, um dos mais temidos policiais daquela corporação. Como ficou constatado que o rapaz não pertencia a nenhuma “organização”, soltaram-no depois de mais alguns “cascudos”.

Nas reuniões do Centro Acadêmico Franklin Delano Roosevelt, no Bar do Antônio, da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal, pulsava o coração do maior centro político da universidade. Líderes como José Loguércio, Clovis Paim Grivot, Raul Pont, Flávio Koutzii, Renato de Oliveira, Pilla Vares comandavam aquelas assembleias, conscientes dos riscos que corriam; infiltrados entre eles os “ratos”, agentes a serviço do DOPS. O grupo não sabia quem eram os estudantes espiões. Nos palcos, o tropicalismo de Gil e Caetano revirava a música brasileira e, como na política, radicalizava tudo. Quem sabia fazia a hora, não esperava acontecer…

Stanley Kubrick antevia o ano de 2001.

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