História Oral, podemos acreditar nela?
História Oral, podemos acreditar nela?**
As questões relativas à memória, suas imbricações com o tempo e com a história, produziram nos últimos anos, principalmente depois da década de 1980, um grande número de trabalhos teóricos com abordagens diversas sobre o assunto.
O uso de depoimentos orais como documento histórico tornou-se então corrente, principalmente entre pesquisadores de cidades no interior onde a ausência de pesquisadores profissionais abriu campo para historiadores amadores, que usaram da tradição oral para compor a “história oficial” do local. É defendida por muitos e preterida por outros tantos, mas afinal, podemos acreditar na tradição oral e como se utilizar dela como documento histórico?
O relato oral está ligado à memória e suas formas de produzir e recordar lembranças de fatos do passado. O historiador inglês Alistair Thomson escreveu que “ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser.
As histórias que relembramos não são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais”. Comparando entrevistas suas sobre a lenda dos Anzacs – um grupo de ex-combatentes australianos sobreviventes da Primeira Guerra Mundial -, em duas épocas distintas, Thomson conseguiu demonstrar que “a investigação e a análise das histórias e silêncios do testemunho oral podem revelar, de forma ampla, a natureza e os significados da experiência e as maneiras como retrabalhamos nossas reminiscências sobre o passado durante nossa vida”.
É necessário considerar que a memória do indivíduo está imbricada com a memória do coletivo. Para Maurice Halbwachs, assim como para Ecléa Bosi, o trabalho da memória efetiva-se a partir de um movimento articulador entre referências individuais e sociais. Para o francês Michael Pollak a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.
Essa flexibilidade permite que o indivíduo seja capaz de lembrar eventos coletivos, ou vivências de outros, como se fizessem parte de sua própria experiência pessoal. É importante considerar que essa busca na memória coletiva para a reconstrução do passado também está associada à impossibilidade humana de reter todas as experiências vividas.
Conforme Edison Saturnino resumiu “o trabalho da memória constitui-se pelos atos de lembrar e esquecer a um só tempo. A lógica da memória encontra o seu correlato na configuração do esquecimento, justamente pelo fato de que a conservação e evocação da totalidade de nosso passado inviabilizariam novas ações e experiências no presente”.
Assim esquecemos determinados eventos de nossas vidas justamente para que outros possam tornar-se proeminentes e também para que novas experiências possam ser vivenciadas e integradas às aventuras de nosso pensamento.
Tornamos assim a memória um agente seletivo, passiva de nossas intenções e desejos, nem sempre declarados.
Para Pollak a construção da memória está sempre associada a três fatores determinantes: acontecimentos, personagens e lugares.
Eles podem ser conhecidos, direta ou indiretamente, e estar relacionados a fatos concretos ou se tratar da projeção ou identificação com outros eventos.
A título de ilustração temos as divergências dos relatos orais sobre o cinema em Osório nas décadas de 1950 e 1960, apresentados em 2008 em um trabalho que realizamos com duas colegas de faculdade, no curso de História da FACOS/CNEC.
Depois de algumas entrevistas, as muitas histórias relatadas pelos entrevistados nos pareceram pertencer à memória coletiva da comunidade osoriense quando comparadas ao material da história oral já publicado de um cinema concorrente ao que ora estudávamos. Alguns aspectos do cotidiano da comunidade apareceram em quase todos esses relatos, ocupando o mesmo espaço e tempo, diferindo apenas no agente histórico, dificultando saber quem realmente havia participado do evento ou que estava apenas usufruindo da memória coletiva da cidade.
Se voltarmos à pergunta inicial, uma resposta adequada é encontrada no trabalho de Janaína Amado. Conforme a autora as entrevistas podem e devem ser utilizadas por historiadores como fontes de informação e como dados de pesquisa, haja vista fornecerem pistas e informações preciosas, muitas inéditas, impossíveis de serem obtidas de outro modo, mas precisam ser tratadas como qualquer outro documento histórico, submetidas a contraprovas e análises.
** Artigo publicado também na revista Dois Pontos, ano 2, número 5, agosto de 2010, por ocasião do XIV Fórum Internacional da Educação, em Osório.