Colunistas

A casa de Dona Salustiana

O toque estridente do telefone quebra o silêncio da hora ainda matutina. Dona Salustiana aceita a chamada interurbana a cobrar vinda de Dom Pedrito. A notícia: Querubina, sua primeira irmã, talvez não passe desta sexta-feira.

A senhora, então, instrui Sophia para que se atenha simplesmente à rotina da casa. Eufórico, apresso-me a contar da viagem de dona Salustiana aos companheiros de quarto, Jóquei, Pé-de-Aço e Sargento Cartola. Pediremos, então, a Salomão da Tabacaria que nos traga da locadora alguns DVD’s de sexo explícito.

Sou um dos hóspedes da casa de dona Salustiana. Fora o doutor Angelo Pimentel, meu amigo de infância, quem para ali me trouxe, ao retornar do Rio de Janeiro, onde concluíra a pós-graduação em traumatologia, no Hospital Miguel Couto. Sophia, a alva e robusta polonesa, é quem, dentre outros cuidados, zela pela minha higiene diária, na antiga banheira de louça. Às vezes, no banho, o tesão aflora e fico de pau duro. A polaca levanta os olhos para o teto e, num português arrevesado, se queixa aos santos de sua devoção, Essa sem-vergonha não respeita o carridade. Como penitência, esfrega minhas costas com todas as forças, indiferente aos meus protestos.

Quando a redação da Folha da Tarde cerrou definitivamente as portas, fui para o Rio de Janeiro. Erasmo D’Ávila, meu ex-chefe de editoria, havia me referendado ao jornal O Globo. À minha chegada, Erasmo levou-me do aeroporto direto para o boteco, nos Altos da Tijuca, onde saboreamos uma feijoada, regada por garrafas do generoso e envelhecido cabernet. O vinho ensejou voos mais altos. Pedimos que nos embalassem outras três garrafas. Numa cavernosa agência lotérica, vizinha ao botequim, Erasmo comprou alguns gramas de cocaína. Fomos para o seu apartamento, no terceiro andar de um condomínio, não longe dali.

Clara e Alba, ante a ausência da mãe, dona Salustiana, não escondem a ansiedade: vislumbram a perspectiva de um fim de semana de balada e muita loucura. Eu próprio estou febril, tamanha a excitação. Em cinco anos que ali me encontro, nunca soube ter a velha senhora se afastado por tanto tempo. Até então, Jóquei, Pé-de-Aço, Sargento Cartola e eu contentávamo-nos apenas com a “leitura” das revistas de sacanagens que Salomão da Tabacaria, junto com cigarros e livros nos presenteava. Com a viagem de Dona Salustiana, estaríamos “liberados” para assistir aos filmes pornôs. Salomão da Tabacaria fora generoso na escolha dos títulos. Sophia estica o mar azul de seus olhos, desconfiada. Resmunga, o quê esses demônios tão me aprontando? Passa das dez da noite. A buzina do BMW, junto ao portão, chama por Clara e Alba.

Recendendo a perfumes, trajando sedas e musselinas farfalhantes e lúbricas, as irmãs não se fazem esperar. Os hóspedes da casa dormem. Num “puxado”, aos fundos do terreno e à parte da casa principal, os lábios rosados de Sophia são as hélices, e o ronco o ruído agoniado de um monomotor em pane. Por ser o mais ágil, Salomão da Tabacaria é quem vai até o nosso quarto e traz as conveniências: pequenas toalhas e o pote de Monange. A fragrância do perfume das duas irmãs ainda paira pela casa. Apagamos a luz.

Andréa, mulher de Erasmo, trabalhava numa importadora, no Shopping da Barra. Teríamos um par de horas para bebermos e cheirarmos o “pó”. Estávamos alegres, falantes. Provoquei, Pô, você tá careca! Pois é… E aquele bom cabelo? Se foi… Pô… completamente careca. Também não exagera, e vê se esquece a minha careca. Desculpe, não sabia que você tinha complexo. Não tenho complexo, mas não precisa ficar gozando da minha careca. Erasmo dava mostras de estar alterado, Acaso falei da tua ex-mulher? Não, só da careca.

Aí, ele insinuou, Maria das Mercês te abandou só pra dar pros garanhões da redação, tu não é de merda nenhuma, ela, sim, era gostosa, muita areia pro teu carrinho de mão. Você está piradão, cara, nem sabe o que está dizendo! Erasmo deu uma gargalhada pirata e completou, Que bunda, companheiro, que bunda! E pôs a língua para fora, em obscenas contorções. As palavras e o gesto de Erasmo me alucinaram. Rebati, Andréa é mais arretada, é só você se descuidar eu “ferro” aquela fêmea. Em revide, Erasmo atirou-me à cabeça o cálice de vinho, causando um corte na têmpora.

Em seu gargalhar bucaneiro, perguntou, Doeu? Grandessíssimo filho-da-puta!, e arremessei com toda a minha raiva um cinzeiro de cristal contra o espelho de corpo inteiro do living, reduzindo-o a centenas de cacos. Andréa chegou, viu o caos e nada entendeu. Erasmo ainda me insultava. Avisei-o que eu ia enrabar a Andréa. Assustada, ela se refugiou na sacada. Sob o alpendre da porta de correr que ligava a sala à pequena área externa, alcancei a mulher.

Segurei firme sua cabeça, escancarei a boca e apliquei-lhe um beijo de língua. O golpe violento de Erasmo acertou-me a nuca. Na calçada, antes de perder a consciência, escutei a voz da anônima mulher anunciar, Caiu de lá, da sacada do terceiro andar! Três meses depois, o doutor Angelo Pimentel faria seu primeiro plantão na Unidade de Comatosos do Hospital Miguel Couto.

Khriska urra, lasciva, ante o coito que o gigante nigeriano impõe. Na penumbra da sala da casa de dona Salustiana, olhos fixos na TV, esqueço o tempo retido e ejaculo sobre os cromados da minha cadeira de rodas.

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