Mar da Serenidade – II
Faz três dias que me encontro nesta casa de praia que pertenceu a Angelo d’Ampezzo – meu avô paterno –, o Chalé Grande, por ele assim batizada. Vim para esta praia trazendo nos escaninhos mais recônditos da alma segredos ali recalcados durante toda uma existência e que, agora, exigiam ser trazidos à luz.
Angelo d’Ampezzo nasceu em Florença. Em 1919, mal ele completara quatro anos de idade, meus bisavós, arrasados ante a prematura perda de um casal de filhos vitimados por uma epidemia de gripe originada da Espanha e que se alastrara pela Europa – então marcada pelos efeitos da I Guerra Mundial, matando aproximadamente vinte milhões de pessoas no mundo to –, num agosto chuvoso, aportaram em Porto Alegre.
Menino ainda, Angelo iniciou a trabalhar como entregador numa distribuidora de alimentos de um patrício da região da Calábria, localizada na zona portuária da Capital. Aos doze anos fora promovido a balconista e, aos quinze, caixa. Desde a mais tenra idade, Angelo d’Ampezzo dera mostra do homem que se tornaria. Com a incondicional pertinácia de um mouro e com as economias feitas com as sobras do salário, abriu, num bucólico bairro na zona sul da cidade, o seu próprio negócio: um pequeno armazém de duas portas.
Na avenida arejada de luz, onde iniciavam a florescer as palmeiras e os viçosos jacarandás que generosamente ensombravam os últimos solares oitocentistas, entre o aviamento das encomendas da freguesia e anotações nos livros contábeis, o nonno viria a conhecer a filha única de um dos seus clientes, adido do Consulado Uruguaio, oito anos mais jovem do que ele: minha avó.
Na sombria manhã de 1º de setembro, quando Hitler ordenou a invasão à Polônia, Angelo e Mercedes casavam-se na igreja que demarcava o limite final daquela arborizada avenida em que morariam pelo resto dos seus dias.
Com o tempo, Angelo d’Ampezzo transformou o pequeno negócio numa das primeiras redes de supermercados, estendendo-se aos demais bairros da cidade. Homem íntegro e leal aos seus princípios religiosos – e por esta mesma razão, defensor intransigente da família e da moral –, nada admitia do que não constasse dos dogmas da Igreja. Não foram poucas as ocasiões em que ouvi minha avó comentar que jamais vira, como em meu pai, cópia tão fidedigna de meu avô; no físico e no caráter.
O Chalé Grande é uma imensa construção de madeira, de dois pisos, cingida, no térreo, por um avarandado, erguida nos meados da década de novecentos e quarenta, para o lazer e as férias escolares dos filhos: três meninas e, o mais jovem, meu pai. No rés do chão ainda hoje se encontram a sala de jantar, a comprida mesa ao centro, cercada por dez banquetas forradas com motivos florais, agora rotos e sem viço; a cozinha; o único banheiro e os três quartos que, mais tarde, se destinariam, além de meus avós, aos dois casais de tios e uma enigmática e amargurada tia, a Solteirona Asmática.
No segundo piso, encontra-se o sótão. Esta peça ocupa toda a extensão da área construída. Com a chegada dos netos, o nonno, de forma engenhosa dividiu aquele espaço com uma cortina de áspero tecido, suspensa por um consistente fio de arame que se estendia desde a parte fronteira do Chalé até a escada de acesso, na extremidade oposta. Ali se instalavam as camas em que dormíamos: de um lado os rapazes; no outro, nós, as meninas. Éramos, ao todo, sete: Marcos, Mauro, Francesco, Totonho, Carmem, Martha e eu, a mais nova, o estorvo daqueles primos – a maioria já adolescente – e, por minha nada invejável condição de criança, impedida de participar das conversas de namoricos, ou de ouvir as anedotas maliciosas que Totonho, o mais hilário do grupo, contava. Era-me vedado sequer acompanhá-los nos passeios e nos jogos de praia; menos, ainda, às reuniões dançantes do único clube do balneário. À garotinha desamparada, introvertida e sorumbática – como eles me consideravam – cerravam-lhe as portas de acesso àquele universo aparentemente feliz e descompromissado.
Carmem, mais tarde, ingressou na política. Foi vereadora e prefeita da cidade onde mora. Martha casou-se e se tornou dona de casa, mãe e vive sua vidinha cotidiana. Francesco, Mauro e Marcos seguiram a carreira militar.
Após os malfadados anos de chumbo, de uma ditadura militar que torturara e ceifara milhares de vidas daqueles que não comungavam com o regime de exceção, o País tornou a respirar os ares da democracia. Fora por esta razão que Francesco abandonou a caserna. Decidiu-se pela medicina legal, função que exerceria com todos os requintes de morbidez, desde o período em que prestara Residência.
Garoto ainda, Francesco dera a conhecer a sua face doentia e perversa. Certa noite ele escondera uma água-viva sob os lençóis de Martha. A prima, na manhã seguinte, arranjou as mochilas e partiu, prometendo jamais retornar ao Chalé enquanto o maquiavélico primo lá estivesse. De outra feita, Francesco cavoucara um buraco na areia, de significativa profundidade, próximo à pequena escada que dava acesso ao Chalé. Cobriu-o com algumas folhas de jornal e, sobre estas, uma fina camada de areia.
Tio Avelino, desavisado, ao descer os degraus, viu-se afundar desastradamente para o interior do buraco, lançando ao longe, ante o impacto da queda, os óculos de grossas lentes. Resultado: fissura da tíbia. Às gargalhadas, Francesco o “consolava”, Que sorte a sua, tio, os óculos ficaram inteiros!
Fora, também, nesta pequena praia, que meus pais se conheceram.