Hoje é dia dos bobos, desconfie de tudo
Hoje é 1º de abril, portanto desconfie de tudo que lhe digam, você pode ser o bobo da vez. Material impresso também não é confiável, lembre-se do caso do “Boimate”, quando a revista Veja copiou uma brincadeira, da geralmente sisuda revista inglesa New Science, que anunciava um novo tipo de transgênico, fundindo células vegetais com animais. Teriam criado um tomate não só com uma parte protéica, mas já com gosto de bife ao molho de tomate. Portanto, estejam atentos, hoje não é dia de confiar em cientistas, o cruzamento de um pombo-correio com papagaio para mandar mensagens faladas está ainda longe de acontecer. Notícias arqueológicas tampouco são confiáveis, afinal, já foram anunciadas as descobertas dos braços da Vênus de Milo e a localização exata da aldeia do Asterix. Desconfie ainda de notícias políticas, a África do Sul não comprou Moçambique por US$ 10 bilhões e, pelo que se sabe, o país não está à venda.
Embora não tenha uma força muito grande, esse dia da brincadeira se mantém há tantos séculos que os folcloristas têm dificuldades para explicar sua origem. Por certo nasceu na Europa, de lá chegou até nós, e de alguma forma está ligado ao antigo dia do começo do ano que era em abril. O ano abria com a primavera (no hemisfério norte) e suas promessas de calor e de devolver a fertilidade ao campo.
Uma das teorias mais aceitas para explicar o costume é referida à ocasião, em 1564, na qual o rei da França Carlos IX trocou a entrada do ano para janeiro. Como as notícias demoravam para chegar aos lugares mais remotos e as pessoas resistiam às mudanças, o desinformado que comemorasse o ano novo na data antiga seria considerado tolo, por não saber da grande novidade. Esse evento teria dado início do Dia dos Bobos. O problema quanto a esse mito de origem da data, é que existem fontes que relatam a comemoração do Dia dos Bobos em épocas anteriores a essa troca, o que enfraquece bastante essa tese. Possivelmente, a idéia de um ritual referido ao começo de algo, ano novo e primavera, é o que possa nos dar pistas para pensar essa origem, afinal os começos estão sempre marcados por brincadeiras similares. Basta lembrar o trote a que são submetidos os novatos em uma instituição de ensino, as brincadeiras com os noivos no dia do casamento (hoje um pouco em desuso) ou ainda algumas pegadinhas feitas com quem começa um trabalho novo. Essas brincadeiras nos fazem pensar em micro-ritos de passagem.
Na tradição de 1º de abril, as vítimas são geralmente as crianças. Uma brincadeira comum na Europa é mandar as crianças na casa do vizinho para buscar um pouco de “calor da cama”, ou ainda colocar alguém numa “missão de bobo” (na gíria americana: numa caçada ao pato) ou seja, mandar entregar um bilhete a alguém. Quando chega ao destino este o lê e é informado que deve mandar esse “pato” mais adiante, alega erro de destinatário e manda o infeliz entregar o bilhete a outro. Na Escócia o bilhete diz: “On the first of April, send the gowk whither you will” (“No 1º de abril, mande o idiota onde você quiser”).
O trote aos calouros universitários é a tradição que mais se mantém. A estrutura é simples: os novatos devem se submeter às brincadeiras dos veteranos. A mensagem também é simples, vocês são bobos e vão pagar mico porque não sabem nada, enquanto nós, que chegamos antes, é que já sabemos. A maneira como facilmente essas brincadeiras tendem ao sadismo mostra como, além da vantagem de fazer-se de sábio às custas da ignorância alheia, os novatos não são bem vindos. Ou melhor, são recebidos duma maneira similar àquela com que recebemos um irmão que chega. Um dia, o caçula será um igual a nós, poderá ser parceiro de brincadeiras e até vir a nos ajudar, mas antes vai ter que disputar um lugar que até então era meu. Logo, a ambivalência está instalada e o trote é a sua atuação.
As brincadeiras com quem chega a um novo serviço são as mais criativas. O neófito é mandado a buscar uma “chave de fenda para canhoto”, “uma lata de vapor” ou algo como “um espichador de tábua” ou ainda um papel, que seria um suposto “protocolo x”, que faz com que ele bata em todas as portas da burocracia da empresa. Um amigo comissário de vôo presenciou o suplício imposto no primeiro vôo de uma aeromoça neófita: o piloto a fazia saltar no fundo do corredor, na cauda de um Airbus, enquanto ele supostamente corrigia da cabine, graças aos pulos, o “alinhamento” do avião. A estrutura aqui é semelhante ao trote, existe a dimensão de mico acrescida da de engano. Depois do logro ser comunicado ele é alvo de gozação de todos e é formalmente aceito no grupo, como se tivesse pagado o preço da aceitação, o grupo passa a ter mais uma história engraçada e mais um membro.
Mas, se em abril abre-se um período, quando é que ele se fecha? Aqui entra a genialidade do antropólogo americano Alan Dundes, que se fez essa pergunta. Conforme ele, o fechamento é feito no dia das bruxas, em Halloween, outro período de brincadeiras e trotes. Na origem, uma data celta que comemorava o fim do verão e a abertura de um período de comunicação com o mundo dos mortos. Se a primavera abre para a vida e a fertilidade, o outono traz a marca da morte e da desolação, é o momento da chegada do inverno, do frio e das dificuldades que ele impõe. Essas datas são, no plano coletivo, o que os trotes e ritos de passagem são no plano pessoal, uma ocasião em que algo muda e portanto deve ser assinalado. O tempo da mudança é uma ocasião de exceção, pois entre um momento e outro fica suspensa a ordem estabelecida: a partir de determinado ponto, considera-se que algo ou alguém já não é mais o mesmo, porém ainda não chegou do outro lado. Vive-se esse instante onde as regras são outras e que funciona como um “carnaval pontual”. O Carnaval é um ocasião de inversão da ordem e hierarquia do mundo, ali todos podem ser qualquer coisa, toda fantasia vale, toda brincadeira é permitida.
Se essa teoria está certa, o 1º de abril seria um resto arcaico que pouco sentido traria para nós, já desligados dos ciclos naturais e mágicos, então, por que se mantém?
Se como ritual esses trotes já são de gosto duvidoso o uso indiscriminado deles em programas baratos de TV tem testado a paciência de muitos. A internet incrementou a vida das pegadinhas, através de histórias mirabolantes que são passadas adiante, da mesma forma como o tolo mensageiro era mandado de um lado para outro portando seu bilhetinho. Afinal, quem não conhece a história do “gato-bonsai”? Nesse caso não se trata de um ritual, estamos longe do 1º de abril, mas a pergunta que elas nos colocam é a mesma: por que nos é tão necessário passar por sabidos vendo uma trapalhada de alguém mais idiota que nós? Ou até, fazer o papel de bobos, levando adiante a corrente de uma babaquice evidente?
A princípio, é inevitável notar que os otários de plantão são sempre as crianças. Elas são destinatárias de nossas mentiras poéticas, das lorotas lúdicas ou das omissões sobre aqueles assuntos que não queremos ou não conseguimos falar. Mais espertas do que parecem, muitas vezes elas não acreditam, mas participam da brincadeira, ou apenas são suficientemente polidas a ponto de não fazer perguntas constrangedoras. Se os pais estão aos gritos no quarto e ao sair, com os olhos vermelhos e a cara inchada, a mãe disser ao filho que está gripada, ele se fará de tolo para não constrangê-la, quer essa atitude seja consciente ou não. Às crianças, portanto, cabe o papel do tolo principiante.
Em parte é verdadeiro, porque elas têm muito para aprender e são, de certa forma, ignorantes devido à inexperiência, como o neófito no emprego ou na faculdade. Mas isso não quer dizer ser bobo. Além disso, assim como a criança, o principiante em qualquer coisa tem direito à proteção, aos ensinamentos e tem licença para errar. Condições essas que não deixam de ser invejáveis aos olhos dos mais experientes, os quais têm que se virar sem pedir ajuda, considera-se que o que não sabem já deviam ter aprendido e se erram são pior que tolinhos, são incompetentes. O neófito, assim como o caçula, detém alguns dos privilégios do tipo que só temos na infância. Por isso os amamos, dedicando-lhes rituais de recepção, mas os odiamos por inveja.
Numa vida bem vivida estamos sempre (re)começando: uma relação, um hobby, uma amizade, um estudo, uma língua, um trabalho, um esporte, um filho, a vida após uma perda. A história de todos é cheia de esquinas, viramos e precisamos encarar outra paisagem e, para todas essas novidades, viria bem se fossemos recebidos como calouros por uma turma disposta a nos integrar e ensinar, mesmo à custas de um mico inicial. Nem sempre acontece, em geral estamos sozinhos e sentimo-nos ignorantes como crianças. Ainda bem que resta pelo menos algum tipo de brincadeira de 1º de abril, para poder achar-se sabido e bacana, mas também para poder ser tolo e principiante.
*Psicanalista membro da APPOA. Co-autor de Fadas no Divã
originalmente publicado no jornal Zero Hora/Caderno Cultura
Embora não tenha uma força muito grande, esse dia da brincadeira se mantém há tantos séculos que os folcloristas têm dificuldades para explicar sua origem. Por certo nasceu na Europa, de lá chegou até nós, e de alguma forma está ligado ao antigo dia do começo do ano que era em abril. O ano abria com a primavera (no hemisfério norte) e suas promessas de calor e de devolver a fertilidade ao campo.
Uma das teorias mais aceitas para explicar o costume é referida à ocasião, em 1564, na qual o rei da França Carlos IX trocou a entrada do ano para janeiro. Como as notícias demoravam para chegar aos lugares mais remotos e as pessoas resistiam às mudanças, o desinformado que comemorasse o ano novo na data antiga seria considerado tolo, por não saber da grande novidade. Esse evento teria dado início do Dia dos Bobos. O problema quanto a esse mito de origem da data, é que existem fontes que relatam a comemoração do Dia dos Bobos em épocas anteriores a essa troca, o que enfraquece bastante essa tese. Possivelmente, a idéia de um ritual referido ao começo de algo, ano novo e primavera, é o que possa nos dar pistas para pensar essa origem, afinal os começos estão sempre marcados por brincadeiras similares. Basta lembrar o trote a que são submetidos os novatos em uma instituição de ensino, as brincadeiras com os noivos no dia do casamento (hoje um pouco em desuso) ou ainda algumas pegadinhas feitas com quem começa um trabalho novo. Essas brincadeiras nos fazem pensar em micro-ritos de passagem.
Na tradição de 1º de abril, as vítimas são geralmente as crianças. Uma brincadeira comum na Europa é mandar as crianças na casa do vizinho para buscar um pouco de “calor da cama”, ou ainda colocar alguém numa “missão de bobo” (na gíria americana: numa caçada ao pato) ou seja, mandar entregar um bilhete a alguém. Quando chega ao destino este o lê e é informado que deve mandar esse “pato” mais adiante, alega erro de destinatário e manda o infeliz entregar o bilhete a outro. Na Escócia o bilhete diz: “On the first of April, send the gowk whither you will” (“No 1º de abril, mande o idiota onde você quiser”).
O trote aos calouros universitários é a tradição que mais se mantém. A estrutura é simples: os novatos devem se submeter às brincadeiras dos veteranos. A mensagem também é simples, vocês são bobos e vão pagar mico porque não sabem nada, enquanto nós, que chegamos antes, é que já sabemos. A maneira como facilmente essas brincadeiras tendem ao sadismo mostra como, além da vantagem de fazer-se de sábio às custas da ignorância alheia, os novatos não são bem vindos. Ou melhor, são recebidos duma maneira similar àquela com que recebemos um irmão que chega. Um dia, o caçula será um igual a nós, poderá ser parceiro de brincadeiras e até vir a nos ajudar, mas antes vai ter que disputar um lugar que até então era meu. Logo, a ambivalência está instalada e o trote é a sua atuação.
As brincadeiras com quem chega a um novo serviço são as mais criativas. O neófito é mandado a buscar uma “chave de fenda para canhoto”, “uma lata de vapor” ou algo como “um espichador de tábua” ou ainda um papel, que seria um suposto “protocolo x”, que faz com que ele bata em todas as portas da burocracia da empresa. Um amigo comissário de vôo presenciou o suplício imposto no primeiro vôo de uma aeromoça neófita: o piloto a fazia saltar no fundo do corredor, na cauda de um Airbus, enquanto ele supostamente corrigia da cabine, graças aos pulos, o “alinhamento” do avião. A estrutura aqui é semelhante ao trote, existe a dimensão de mico acrescida da de engano. Depois do logro ser comunicado ele é alvo de gozação de todos e é formalmente aceito no grupo, como se tivesse pagado o preço da aceitação, o grupo passa a ter mais uma história engraçada e mais um membro.
Mas, se em abril abre-se um período, quando é que ele se fecha? Aqui entra a genialidade do antropólogo americano Alan Dundes, que se fez essa pergunta. Conforme ele, o fechamento é feito no dia das bruxas, em Halloween, outro período de brincadeiras e trotes. Na origem, uma data celta que comemorava o fim do verão e a abertura de um período de comunicação com o mundo dos mortos. Se a primavera abre para a vida e a fertilidade, o outono traz a marca da morte e da desolação, é o momento da chegada do inverno, do frio e das dificuldades que ele impõe. Essas datas são, no plano coletivo, o que os trotes e ritos de passagem são no plano pessoal, uma ocasião em que algo muda e portanto deve ser assinalado. O tempo da mudança é uma ocasião de exceção, pois entre um momento e outro fica suspensa a ordem estabelecida: a partir de determinado ponto, considera-se que algo ou alguém já não é mais o mesmo, porém ainda não chegou do outro lado. Vive-se esse instante onde as regras são outras e que funciona como um “carnaval pontual”. O Carnaval é um ocasião de inversão da ordem e hierarquia do mundo, ali todos podem ser qualquer coisa, toda fantasia vale, toda brincadeira é permitida.
Se essa teoria está certa, o 1º de abril seria um resto arcaico que pouco sentido traria para nós, já desligados dos ciclos naturais e mágicos, então, por que se mantém?
Se como ritual esses trotes já são de gosto duvidoso o uso indiscriminado deles em programas baratos de TV tem testado a paciência de muitos. A internet incrementou a vida das pegadinhas, através de histórias mirabolantes que são passadas adiante, da mesma forma como o tolo mensageiro era mandado de um lado para outro portando seu bilhetinho. Afinal, quem não conhece a história do “gato-bonsai”? Nesse caso não se trata de um ritual, estamos longe do 1º de abril, mas a pergunta que elas nos colocam é a mesma: por que nos é tão necessário passar por sabidos vendo uma trapalhada de alguém mais idiota que nós? Ou até, fazer o papel de bobos, levando adiante a corrente de uma babaquice evidente?
A princípio, é inevitável notar que os otários de plantão são sempre as crianças. Elas são destinatárias de nossas mentiras poéticas, das lorotas lúdicas ou das omissões sobre aqueles assuntos que não queremos ou não conseguimos falar. Mais espertas do que parecem, muitas vezes elas não acreditam, mas participam da brincadeira, ou apenas são suficientemente polidas a ponto de não fazer perguntas constrangedoras. Se os pais estão aos gritos no quarto e ao sair, com os olhos vermelhos e a cara inchada, a mãe disser ao filho que está gripada, ele se fará de tolo para não constrangê-la, quer essa atitude seja consciente ou não. Às crianças, portanto, cabe o papel do tolo principiante.
Em parte é verdadeiro, porque elas têm muito para aprender e são, de certa forma, ignorantes devido à inexperiência, como o neófito no emprego ou na faculdade. Mas isso não quer dizer ser bobo. Além disso, assim como a criança, o principiante em qualquer coisa tem direito à proteção, aos ensinamentos e tem licença para errar. Condições essas que não deixam de ser invejáveis aos olhos dos mais experientes, os quais têm que se virar sem pedir ajuda, considera-se que o que não sabem já deviam ter aprendido e se erram são pior que tolinhos, são incompetentes. O neófito, assim como o caçula, detém alguns dos privilégios do tipo que só temos na infância. Por isso os amamos, dedicando-lhes rituais de recepção, mas os odiamos por inveja.
Numa vida bem vivida estamos sempre (re)começando: uma relação, um hobby, uma amizade, um estudo, uma língua, um trabalho, um esporte, um filho, a vida após uma perda. A história de todos é cheia de esquinas, viramos e precisamos encarar outra paisagem e, para todas essas novidades, viria bem se fossemos recebidos como calouros por uma turma disposta a nos integrar e ensinar, mesmo à custas de um mico inicial. Nem sempre acontece, em geral estamos sozinhos e sentimo-nos ignorantes como crianças. Ainda bem que resta pelo menos algum tipo de brincadeira de 1º de abril, para poder achar-se sabido e bacana, mas também para poder ser tolo e principiante.
*Psicanalista membro da APPOA. Co-autor de Fadas no Divã
originalmente publicado no jornal Zero Hora/Caderno Cultura