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Imortalidade – Por Jayme José de Oliveira

Henrietta Lacks, cujo nome de batismo era Loretta Pleasant, nascida em 1920, desenvolveu um tumor cervical que mudaria o entendimento de muita coisa na biologia. As células extraídas de sua biópsia ainda estão vivas, e com certeza são muito mais numerosas hoje do que quando ela era viva, até 1951. Mas a história de Henrietta e sua família é muito mais rica do que suas células, e grande parte desta noção seria perdida sem o livro de Rebecca Skloot “A Vida Imortal de Henrietta Lacks”.

Rebecca é uma escritora com formação em ciências, que queria contar a história de Henrietta desde que ouviu sobre células HeLa aos 16 anos. “A Vida Imortal” é seu primeiro livro, e consumiu 10 anos (e um casamento, nas palavras dela) para ser escrito, principalmente porque ela precisou contatar os familiares e fazer grande parte do levantamento de material com a filha mais nova de Henrietta, Deborah.

Para começar, nem Henrietta nem sua família autorizaram o uso nem souberam do destino de suas células. Seus filhos só foram informados do acontecido no começo da década de 1970, por puro interesse, quando se cogitou estudar o conteúdo genético da família Lacks por causa das células. E mesmo assim foram mal informados. O marido de Henrietta, David Lacks mal havia cursado o ensino fundamental, e ao ser informado sobre as células HeLa, sem fazer idéia do que era uma célula, entendeu que sua mulher havia sido mantida viva pelos últimos 20 e poucos anos, sendo utilizada como cobaia em diversos laboratórios para todo tipo de testes.

Rebecca conta em seu livro a dificuldade que foi conseguir encontrar os filhos de Henrietta, em grande parte pela forma com que foram sempre tratados pela mídia e por cientistas, muitas vezes ávidos por fazer perguntas, mas sem paciência nenhuma para explicar o que faziam com as células de sua mãe. Muito pobres e com pouca educação, nunca lucraram com todo o uso comercial que foi feito com as células HeLa. Milhões em vendas de células e reagentes, sem contar os produtos desenvolvidos graças aos testes que elas permitiram.

No hospital, uma amostra do colo do útero de Henrietta havia sido extraída sem o seu conhecimento, e fornecida à equipe de George Gey. Gey demonstrou que as células cancerígenas desse tecido possuíam uma característica até então inédita – mesmo fora do corpo de Henrietta, multiplicavam-se num curto intervalo, tornando-se virtualmente imortais num meio de cultura adequado. Por causa disso, as células ‘HeLa’, logo começaram a ser utilizadas nas pesquisas em universidades e centros de tecnologia. Como resultado, a vacina contra a poliomielite e contra o vírus HPV, vários medicamentos para o tratamento de câncer, de AIDS e do mal de Parkinson, por exemplo, foram obtidos com a linhagem ‘HeLa’. Apesar disso, os responsáveis jamais deram informações adequadas à família da doadora ou ofereceram qualquer compensação moral ou financeira pela massiva utilização das células. “A vida imortal de Henrietta Lacks” reconstitui a vida e a morte desta personagem da história da medicina. O livro procura demonstrar como o progresso científico do século XX deveu-se em grande parte a essa mulher.

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A narrativa do livro segue duas frentes, uma descrevendo o rumo que as células de Henrietta percorreu, a doação para milhares de pesquisadores que obtiveram inúmeros achados, e tiveram até outras culturas contaminadas e dominadas pelas sempre crescentes HeLa. A outra, descrevendo a aventura da autora e de Deborah para descobrir mais sobre sua mãe e sua família, inclusive o destino de uma irmã com problemas mentais que havia desaparecido após a morte de Henrietta. Uma mistura fantástica de ciência e história pessoal, que com certeza contribuiu para o livro ser um dos mais vendidos nos EUA por semanas após seu lançamento. É uma leitura deliciosa para todo tipo de interesse, científico ou não.

Ao fim, uma ótima discussão sobre bioética, sobre o uso de material biológico derivado de pacientes, e as implicações filosóficas, jurídicas e comerciais. Um livro que levou dez anos para ser escrito, e foi concluído e publicado pouco depois da morte de Deborah. De blogueira e escritora para autora de um enorme best-seller, Rebecca com certeza merece a fama que alcançou, ainda mais impressionante por ser seu primeiro livro.

Para mim, a melhor leitura “não ciência” do ano passado.

Desde então, tenho usado células HeLa em meus experimentos, basicamente para infectá-las com HIV sem que ele se replique, pois ele não encontra os receptores que precisa na superfície destas células. Não consigo evitar pensar na história do livro toda vez que vejo as iniciais no frasco de cultura, e pensar que muita gente deve cultivá-las sem nem saber o que se passou antes de elas estarem no frasco. Alguém aí conhece a história das células Ghost, que também uso?

Obs: Um documentário da BBC de 1997, The Way of All Flesh, por Adam Curtis, que nas palavras do Kentaro “Se é Adan Curtis, tem que ver. Vale não só pela história de Henrietta, mas também por toda a história da descoberta e do combate ao câncer que ele conta.

A autora criou uma fundação para onde parte dos proventos deste livro está sendo encaminhada.

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Rebecca Skloot

Jayme José de Oliveira
cdjaymejo@gmail.com
Cirurgião-dentista aposentado

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