A ausência de quem amamos – Sergio Agra
“Se eu soubesse o quanto dói a vida,
Essa dor tão doída não doía assim”.
“Naquela mesa”, composição de Sergio Bittencourt
Se Theophilo Pereira Agra, meu pai, este Plano ainda habitasse completaria nesta terça-feira, 3 de novembro, 99 anos de idade. Sua poltrona predileta há muito se foi para alguma instituição de caridade, não sei. Se ela surgisse aos meus olhos eu diria que naquela poltrona ele sentava sempre e a saudade dele ainda dói em mim. Sublimo este sentimento a cada leitura de meu texto escrito na madrugada seguinte à noite em que ele partiu. Foram precisos sete anos para que durante um porre de generoso rouge seguido de Cointreau eu despejasse nos braços de minha mãe o pranto e sentimento de culpa: em nosso último encontro tivéramos uma acirrada discussão. Na tarde de sexta-feira, 16 de março, eu passara à frente da filial do banco em que ele trabalhava e decidi por não entrar para vê-lo. No início daquela noite meu pai partiria. Minha mãe, como toas elas, me acolheu meu colo.
Pai, nossos diálogos algumas vezes foram difíceis, quase que inviáveis. Afastávamo-nos magoados, cada qual falando linguagens diferentes.
Recusavas-me o empréstimo do teu automóvel imaginando que eu, maluco, alçasse voos pelas ruas atropelando meio mundo. Restava-me, pois, usar o carro às escondidas, o que me custou muitos bailes e festas.Decidiste com que eu, aos dezessete anos, transferisse os estudos para o turno da noite e trabalhasse durante o dia para não correr riscos de me tornar ginasiano profissional. Horrorizava-te o fato de saber que eu naqueles cinzentos anos sessenta participava das greves e das manifestações estudantis contrárias ao regime militar. Saltaste de tua cativa poltrona quando afirmei quão retrógrado, descabido e hipócrita era o protesto da Igreja Católica em plena procissão de Corpus Christi contra o projeto do divórcio. Idolatravas a organização e o modelo empresarial americano. Para te contrariar eu dizia que abominava o capitalismo selvagem. Erguias o dedo indicador e rebatias que eu somente fazia a leitura das esquerdas.
Pois é, meu Velho, no entanto jamais corri o risco de responder processo por perdas de vidas humanas na direção de um carro. Sou um profissional do Direito. Tenho minhas fugas, meus devaneios e atrevimentos literários de que tanto te orgulhavas e dizias “Este é o meu filho!”. Tiveste a alegria de adormecer em teus braços Angelo, o neto primeiro.
Deixei de lado a anarquia inconsequente da juventude e herdei tuas maiores virtudes, a Honra e a Honestidade. Não pude, é lógico, ser partidário de todas as tuas opiniões, pois eram nesses confrontos que residia o calor dos nossos debates. Permaneci defensor do divórcio e contrário aos dogmas da Igreja. Sempre fui dono de minhas opiniões políticas e ideológicas. Polêmico,contestador, incoerente? Sim, muitas vezes!
Soube que há poucos dias disseste que nós, teus filhos, deveríamos te achar “careta” porque tu e a mãe eram felizes, companheiros, amantes e amigos numa relação de 32 anos. Que lindo, meu Velho querido! Pudera eu vivenciar esses mesmos sentimentos. Quem sabe, algum dia…
Quanto ao “theamericanboss”, este se absteve em comprovar o que entendias como correto, ignorando tua fidelidade, dedicação e as noites insones para que o gigante de mármore e vidros climatizados* com vistas para a Praça da Alfândega se erguesse e se tornasse realidade. Ignoraram, sobretudo, o teu coração — ah, meu Velho, este teu coração — cada vez mais acelerado.
Isto é um pouco de ti, e para tantos é tudo. Todos os meus deslizes perdoavas sem demora, ainda que não me dissesses. Eu custava mais tempo para te entender. Somente não perdoei tua única falta: não nos preparaste para a tua breve partida.
Escrita na madrugada de 17/03/1979
*Edifício sede da filial do Chase Manhattan Bank, na Rua da Praia. O Banco não mais existe.
Na foto, eu e meu pai.