A emergência de uma consciência ética. – José Alberto da Silva
A EMERGÊNCIA DE UMA CONSCIÊNCIA ÉTICA.
(Lucas C. Roxo)
Assim como o Sérgio Agra transcreveu texto meu num fraterno gesto misto de coragem/bondade, até me inventar como um colunista risonho, quero seguir seu exemplo compartilhando texto de um amigo chamado Lucas C. Roxo. Escritor de verdade, professor, mestre em filosofia, cheio dos raciocínios que descadeiram a gente. Ao contrário de mim ele é jovem; mais contrário ainda, ele escreve sobre coisa séria e demonstra capacidade e consistência para tal, ao contrário dos que provocam riso quando os imaginamos empostando a voz para falar de desgraças universalmente condenadas. Ele escreveu este texto ao ensejo do lançamento oficial dia 28 deste agosto, nesta sexta-feira, as 20;00 horas pelas redes sociais, no YouTube e Facebook, em seus canais oficiais da FRENTE NEGRA GAÚCHA, onde é Secretário, e à qual tenho a honra de me juntar. Leiam para boa reflexão. Vai valer à pena.
A EMERGÊNCIA DE UMA CONSCIÊNCIA ÉTICA.
Diante das diversas tentativas históricas de invisibilizar o negro através da negação e mecanismos estruturais de discriminação, tornou-se inviável a formação de uma consciência ética. Por outro lado o tensionamento desses fatores, atualmente torna inelutável a emergência de um pacto ético entre os indivíduos, a sociedade e as instituições.
Da abolição, 132 anos se passaram e com eles quatro gerações. As duas primeiras tentaram sobreviver. Com o sonho da liberdade assegurada, foram abandonados e tiveram que lidar com a sorte. Reuniram-se em quilombos, favelas, comunidades e no interior do país. Enquanto tentavam sobreviver ainda se submetiam aos senhores, outros, simplesmente perambulavam. Alguns senhores reivindicavam indenização do Estado pela perda de seu “produto negro” e sua mão de obra escrava. As outras duas gerações ainda sob o jugo dos efeitos da história de seus ancestrais, padecem com o racismo a síntese patológica, perversa, de um certo ressentimento.
Imersos em uma sociedade desigual, estruturada em certa medida, para mantê-los atados a seus tentáculos, as oportunidade parecem não chegar aos negros, não há esforço que os aproximem de um certo nível de vida digna. Segundo a historiadora Lilia M. Schwarcz em dicionário da escravidão e liberdade, diziam de 1880 que “a liberdade pode ser negra, mas a igualdade, apenas branca”. A desigualdade no seio da estrutura social brasileira é um projeto político sustentado pelas elites. Negro livre sem igualdade é o mesmo que ser escravizado. A desigualdade é, por consequência, o prolongamento intencional da escravidão.
Há uma retroalimentação entre racismo e desigualdade que são refletidas em violência na sutileza do racismo e comportamentos e na crueza simbólica dos números: mais da metade da população brasileira (64,2%) são negros e pardos; 6% das pessoas, em sua grande maioria negros, vivem na favela; 54,9% da força de trabalho é negra, porém 47,3% são informais. Bom, mas aqui interessa mais a interpretação pois boa parte do fato é construção. A narrativa torna visível o invisível o outro.
A perversidade da escravidão continua reverberando no mais íntimo das vidas negras, nos corpos de homens e mulheres, crianças e jovens, nas estruturas sociais, culturais, educacionais e políticas do Brasil. A subjetivação da perversidade, tanto pelos negros como pelos não negros, naturalizou-se e tornou-se inconsciente, subjacente ao modo de ser dos sujeitos. Configurou-se em uma forma inautêntica de existência do ser brasileiro, evidenciada na negação de si e do outro. Essa realidade tornou-se insustentável e ameaça inviabilizar o país.
O que é preciso para superar esse estado de coisas, a negação do outro e a própria estrutura desigual da sociedade? Uma narrativa ética. É necessariamente, a ética que precisa ser resgatada no Brasil.
ÉTICA DO RECONHECIMENTO. Para sobreviver o negro teve que ser negado. Viver significou negar-se. A negação não foi só pessoal mas coletiva, social e institucional. Negou sua tradição, negou sua cor… negou ser quem era. A negação foi internalizada até o ponto de considerar-se o outro diferente de si, e, em alguns casos, a negação absoluta ser objeto. Enquanto objeto ou coisa, o negro passou a não ter valor para si e por si e, tampouco, para a sociedade. Essa objetificação o invisibilizou. Ser invisível rendeu-lhe ser tratado com indiferença e, perceber-se nesse modo de ser, garantiu-se sobreviver, mas também lhe trouxe baixa-autoestima, o complexo de inferioridade e mecanismos psicológicos de autodefesa. O negro precisa superar a invisibilidade a qual vive no ser outro.
O negro não só se negou, mas foi negado pelo outro e pelo próprio Estado. É justamente dessa dimensão de exclusão pela negação que advém a responsabilidade ética do reconhecimento como imperativo categórico que recai, principalmente, sobre aqueles que o negam: reconheça-me ou serás vitima da sua própria negação. Esse processo deve ser acompanhado por uma terapia com a história. Se tanto o negro quanto os não-negros quiserem se libertar, devem se reconhecer como produto de um sistema perverso. A ética do reconhecimento é necessária para suplantar o peso da culpa pelas próximas gerações.
ÉTICA DA AUTERIDADE. Somos diferentes. A diferença é um principio que constitui as identidades pessoal e social. O auto reconhecimento e o reconhecimento do outro só é possível quando os indivíduos se veem como diferentes, ou seja, como o outro de si.
A razão universal e homogeneizante vê na diversidade humana uma ameaça àqueles que se julgam superiores, melhores e dignos. Isto ocorre porque há uma base moral, conservadora e de forte influencia europeia arraigada nos núcleos familiares, grupos e classes sociais, visíveis, por exemplo, nos discursos contra o identitarismo.
Contudo, a presença, o estar diante de outro é uma interposição ética intransponível. O outro que sou eu e você é mediado pela proximidade, pelo rosto, pelo olhar, pelo corpo, pelo outro enquanto diferença. Essa perspectiva ética foi desenvolvida por Levinas e Martin Buber e nos interpela ao vínculo de responsabilidade de uns com os outros.
A negação das identidades não possibilita a valorização do indivíduos, seja ele negro ou não, impossibilitado praticas intersubjetivas de racionalidades convergentes que possam superar a negação do outro e viabilizar sua inclusão.
Uma sociedade que nega o outro tem dificuldades de cuidar uns dos outros, de respeitar e valoriza-lo em sua diferença. O rasgo moral e ético no tecido social brasileiro deve ser reconstituído com a integração do negro. A diferença potencializa e dignifica.
ÉTICA DA REPARAÇÃO. Além da ética do reconhecimento e da auteridade é imprescindível que se preconize tanto no viés histórico, como no econômico e no político uma ética da reparação. Esta é uma ética proposta por ACHILLE MBEMBE está vinculada às demais por conter “no cerne da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo ou seja a realização de uma justiça universal”, ainda distante sua efetividade, mas no Brasil, de 2003 a 2014 já foi iniciada com as políticas afirmativas. Somente a quarta geração de negros livres e iguais em dignidade e direitos começam a perceber seus efeitos. A educação é o termômetro. Pela primeira vez na historia, o percentual de negros no ensino superior, 50,3%, é superior a dos não negros.
O processo de restituição e reparo precisa avançar para o mundo do trabalho e da política em que a proporção de eleitores negros e pardos é de 27% e nas funções de liderança somente 29,9% são negros. A ética da reparação sinaliza um mínimo ético de justiça e garantia de condição de vida decente para restituir dignidade aos cidadãos que foram e são objetificados e excluídos dos acessos aos bens simbólicos historicamente construídos, inclusive, por eles.
Na esteira dessa consciência ética, surge em2019, a FRENTE NEGRA GAÚCHA com o propósito de contribuir para a reparação e restituição dos negros aos diferentes espaços de poder.
Negros e não/negros são convocados diante desse Estado injusto, a se unirem em torno de um pacto ético, o qual “implica, consequentemente, o reconhecimento do que se poderia chamar a parte do outro, que não é minha, mas da qual sou o fiador, queira eu ou não”. Nele, autenticidade deve ser princípio.