A estrela sobe
Não foi preciso esforço para concluir que a Thais está pronta para investir na área do conto “noir”. Sucessora de Edgar Alan Poe? O conto obedece todos os quesitos: um só conflito, fluidez, indícios, tensão e o final surpreendente.
A unidade de ação condiciona as demais características do conto. Não vou me alongar; os generosos leitores que façam também a avaliação. A partir daqui a responsabilidade é dela: Thais Maciel, uma outra estrela, quem sabe?
Como é doce o seu perfume!
Naquela fria manhã de dezembro de 1977, Benjamin Parker acordou sobressaltado; passara uma noite aterrorizante, sem dúvida, a pior de toda sua vida.
Mesmo assim levantou tarde, tomou um banho demorado, privilégio para esse dia, e vestiu um uniforme limpo, igual ao de todos os dias. Escolheu a refeição, mas sequer sentiu o gosto da comida.
De tudo, o mais difícil foi a despedida de sua mãe, os olhos dela não conseguiram esconder tamanha dor.
Quando o relógio marcou 18 horas, o corpo tremeu. O corredor comprido e sombrio parecia maior porque a corrente nos tornozelos dificultava os passos. A pequena câmara parecia abafada, por isso sentiu uma forte vontade de abrir a janela de vidro espelhado, mas foi colocado na maca e amarrado com tiras de couro nos pulsos e tornozelos que impediam seus movimentos.
Só conseguiu virar a cabeça num esforço para olhar através do vidro, mas apenas a imagem de um homem acabado foi refletida. Sabia que Molly estaria do outro lado da janela, na sala das testemunhas, quase podia sentir a presença dela observando tudo com seus olhos de dor e ódio, desejando que ele sofresse bastante antes de partir deste mundo. Uma aura de melancolia espalhou-se pelo ar.
A fisgada no braço interrompeu seus pensamentos, o médico recém colocara os tubos intravenosos e já sentia o líquido ardendo nas veias enquanto as preces do capelão, encaminhando sua alma, penetravam nos ouvidos como gotas de ácido a corroer sua vida, lentamente.
Da sala contígua, o olhar de Molly permanecia fixo em Benjamin; ela não queria perder nenhum movimento, nenhum gesto. Dia após dia, desde aquela manhã de inverno de 1965 esperou por este momento.
Os primeiros raios de sol começavam a surgir e ela já ia apressada rumo à universidade. As ruas ainda estavam desertas, apenas Margareth abria sua loja de confecções e, um pouco adiante, próximo ao portão da casa abandonada, um rapaz magro, com o pé em cima do muro, amarrava o tênis. Observou que usava um gorro preto e o moletom, também preto, estampava nas costas a bandeira do Texas com a frase – Lone Star State – em vermelho.
Não viu o rosto, mas as pernas lembravam as de um cowboy, compridas e arqueadas. Nunca o vira antes, quem dera nunca tivesse cruzado o seu caminho. Ao passar por ele sentiu um aperto na garganta, uma poderosa mão tapou sua boca e a asfixiou. Tentou reagir, mas já estava completamente imobilizada. Ele a arrastou para dentro da casa velha jogou-a ao chão, onde rasgou seu vestido com violência, vendou os olhos e encheu sua boca com os pedaços arrancados do tecido.
Com calma tirou os cadarços dos tênis enquanto ela se debatia em vão e, contra as costas, amarrou os pulsos que começaram a latejar no mesmo ritmo desesperado das batidas do coração. O corpo dele caiu sobre o seu como uma lápide, a barba mal feita arranhou a pele, a língua repugnante deslizou pelos seios, lambeu o pescoço, o rosto e no ouvido repetiu: “como é doce o seu perfume!”. O cheiro de mofo das tábuas podres do assoalho, misturado ao do próprio sangue, impregnaram suas narinas e ela só conseguia sentir medo, raiva, nojo, impotência, até não sentir mais nada.
Da loja, Margareth estranhou ao ver um homem sair correndo da casa abandonada, sujo, com as roupas decompostas. A polícia encontrou Molly desacordada e, em coma permaneceu por vinte e dois dias, com o maxilar e a bacia fraturados, o baço rompido e vários cortes profundos.
Três semanas depois um rapaz, com a descrição parecida, foi preso quando chegava a sua casa, num bairro pobre da periferia, onde morava com a mãe e uma irmã pequena. Vestia um moletom preto com a bandeira do Texas. Tinha 25 anos, trabalhava num posto de gasolina durante o dia e estudava à noite. Não tinha antecedentes criminais. Isso foi tudo o que Molly soube dele.
O diretor da penitenciária leu as acusações feitas a Benjamin Parker e autorizou o início da execução. Seguindo o procedimento explicou que o condenado à morte por injeção letal receberá a primeira droga – o tiopental sódico – um anestésico forte que o deixará inconsciente e paralisará o sistema respiratório. Sua voz, distorcida pelas interferências do alto-falante, adquiria um tom assustador ao chegar à sala das testemunhas o que provocava em Molly a estranha sensação de estar participando de um filme de terror.
O médico injetou a substância.
Passaram-se dez minutos.
Benjamin Parker mantinha os olhos abertos quando eles começaram a ficar transparentes e remexer. A pele foi adquirindo uma coloração palidamente amarela. Molly respirou fundo na tentativa de recuperar o ar que entrava com dificuldade, seu receio era sufocar junto com ele. Apertou os dedos com força e sua boca contraiu-se de tal forma que os lábios desapareceram.
A voz macabra tornou a anunciar que o segundo produto será injetado – o brometo de pancurônio – que paralisará os músculos. As mãos inquietas de Molly suavam.
Um minuto mais.
Ele permanecia imóvel, olhos abertos, sem emitir som algum. Algumas lágrimas escorriam pelo rosto.
O alto-falante avisou que a terceira e última substância será administrada – o cloreto de potássio – que, suavemente, fará parar o coração. Molly sequer piscava.
Dois minutos após, os lábios de Benjamin começaram a adquirir uma leve tonalidade azul e seus olhos, já sem cor, continuavam abertos.
Quatro minutos mais e ele deu um profundo suspiro.
O médico comunicou o que todos já sabiam.
Molly desabou na cadeira num profundo alívio, mal conseguia acreditar que, enfim, livrava-se daquele peso de lápide que a atormentou durante doze anos.
Anoitecia quando ela tomou o rumo de casa, passos leves, o vento frio tocando o rosto e esvoaçando os cabelos numa agradável sensação de liberdade. Bruscamente estancou, uma poderosa mão tapou sua boca e uma voz conhecida murmurou ao seu ouvido: “como é doce o seu perfume!”.