A longa noite de 30 de abril - Sérgio Agra - Litoralmania ®
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A longa noite de 30 de abril – Sérgio Agra

A longa noite de 30 de abril - Sérgio AgraA LONGA NOITE DE 30 DE ABRIL – (Cap. III de Balada para um Andarilho) 

… óbolo de sua condescendência aos  desvalidos…  

Hoje meu pai morreu. Talvez ontem, não sei. Estou hospedado no clímax hotel, na cidade de curitiba, onde participo do congresso de direito de família, promovido pela universidade federal do paraná. Minha viagem de volta para porto alegre estava programada somente para a tarde do dia seguinte. Na palestra que eu havia proferido defendi a tese da elaboração de um anteprojeto de lei reconhecendo como união estável aqueles que vivem em situação de mancebia. Meu atrevimento não foi visto com bons olhos pelos debatedores. Em sua estupidez eles persistiam em julgar o concubinato como relação indigna das atenções e cuidados da lei. Desconsideravam, no entanto, que as disposições do preceito, se aprovadas fossem, garantiriam acima de tudo os direitos da companheira e da prole eventual, caso o varão as abandonasse, à pensão alimentícia e, se este viesse a lhes faltar por morte, a seus proventos e ao quinhão patrimonial, se houvessem. A postura rançosa dos opositores dava mostras de que eles permaneceriam irredutíveis, o que me constrangeu momentaneamente desistir desse empreendimento.

Recebi a notícia do falecimento de meu pai através de um telegrama enviado por frei josejoaquín, “Seu pai faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames. Frei abadía”. O texto nada esclareceu. Talvez tenha sido ontem. Hoje, 30 de abril de 1981, o presidente figueiredo, em edição extraordinária e em cadeia nacional de televisão, fizera seu pronunciamento acerca da explosão da bomba no riocentro ocorrida há pouco menos de uma hora. Disse o general, “Se foi coisa do lado de lá, não poderia ser mais inteligente. Se foi coisa do nosso lado, não poderia haver burrice maior”.

Fico me perguntando por que pandora não me avisou de que papai havia falecido? Eu a havia informado como sempre faço também com minha mãe — dos telefones para contato nos meus destinos. E desta feita não fora diferente. Que minha mãe não o fizesse era perfeitamente compreensível, deveria estar extremamente abalada.

Peço à telefonista do hotel que me contate com santherminia. A tele-atendente me avisa que o tráfego está muito congestionado, a ligação será demorada. Digo-lhe para que insista, era em caráter de urgência urgentíssima. Enquanto isso, eu mesmo telefonaria para o balcão da companhia aérea no aeroporto internacional afonso pena na tentativa de antecipar meu retorno. Havia um voo da transbrasil com saída prevista para à meia-noite, com escala em florianópolis.

A ligação para santherminia é finalmente completada. Selene, minha irmã, confirma que papai havia falecido naquela manhã e que o enterro será no dia seguinte. Aguardariam minha chegada.

Foi selene quem havia instruído frei josejoaquín como me localizar. É minha intenção assim que chegar a porto alegre encontrar pandora e viajarmos de automóvel ainda na madrugada. Assim poderemos velar o corpo e voltar no mesmo dia. 

Penso em pandora. Como de hábito, não me acompanhou nesta viagem. Como nas ocasiões anteriores surgira-lhe uma reunião de cátedra de última hora no observatório astronômico ou algum compromisso com as amigas Assim ela costuma justificar suas constantes ausências de casa. Nos últimos tempos nossa comunicação tem se estabelecido através de bilhetes  que ela cuida deixar sobre o consolo: “Fui até a praia com a prima didi’. Ela planeja decorar o apartamento para a temporada. Beijos. Pandora”. — “Fui dar uma força pra beatriz reatar o caso dela com aquele comissário de bordo da aerolineas. Dormirei lá esta noite. Até”. — “Aproveitei a carona do geraldo e da berenice. Fomos a gramado comprar alguns móveis. Apronta o talão de cheques”.

Até a visita do papa joão paulo II fora razão para pernoitar no apartamento de rachelabramzadek, notável por seu ecletismo religioso, cujas sacadas do apartamento se localizavam de frente para a avenida onde o pontífice passaria em carro aberto. 

O voo está atrasado em quase uma hora. O gordo instalado na poltrona ao meu lado transpira e exala uísque por todos os poros. A aterrissagem em florianópolis à noite é sempre uma operação de risco. O aeroporto hercílio luz parece encravar-se entre os morros da ilha de santa catarina. A aeronave sobrevoa por um bom tempo a capital catarinense. Baixara, de repente, uma intensa neblina privando qualquer manobra mesmo com o auxílio dos instrumentos de navegação.  O balofo fedia mais ainda. Não suporto a náusea. Para sorte minha, após a escala, algumas poltronas nos fundos da aeronave ficaram vagas e posso completar sozinho o restante da viagem.

Penso novamente em pandora e na vez primeira em que nos falamos. Conhecemo-nos num jantar na casa de amigos em comum. Pandora adorava ao despontar em locais repletos de pessoas ser anunciada com pompas e circunstâncias de uma pop star ou chefe de estado. Aquela noite não haveria de ser diferente. Às palmas e aos óhs faltaram apenas os fantásticos acordes de clarins e o rufar de tambores. Todos lhe prestavam vassalagem. Eu aspirava o buquê de um generoso pinotnoir. O que me restou provar fora o rouge vertendo por sobre minha camisa de seda. Pandora num largo gesto de prima donna havia esbarrado no cálice que eu segurava. Fingiu surpresa e constrangimento. Tranquilizei-a afirmando que não se preocupasse; o vinho bebida nobre não causaria estragos a uma mera camisa, menos ainda haveria de malograr uma noite que prometia ser das mais envolventes. Ela ensejou a si própria achar graça, o óbolo de sua condescendência aos desvalidos dos brilhos e luzes do glamour. Tempos depois admitiu ter percebido e apreciado o galanteio que eu lhe fizera.

No sábado seguinte a convidei para irmos ao encouraçado butikin. A boate naquela noite apresentaria o show de ellafitzgerald, a grande dama do jazz. Fora um encontro memorável e que selaria o início da nossa relação. 

Eu recém me graduara em ciências jurídicas e sociais.  Exercia as atividades de advogado trabalhista para algumas construtoras. Isto me deprimia. Eu definia o litígio laboral como verdadeiro ‘balcão de bazar’, com direito a leilão de ofertas pelos então juízes classistas alguns, incontestáveis analfabetos funcionais —, cuja serventia além de tumultuar a decisão dos magistrados de carreira era tão-somente efetuar o pregão das partes, a por o carimbo nos autos ou perfurar os termos de audiência. Eu era adepto dos feitos de exclusiva competência de varas especializadas da justiça do trabalho e julgados por juízes aprovados em concurso público.  Assim os atos processuais refletiriam o dinamismo, o conhecimento técnico e a imparcialidade com que se aspira à decisão final do litígio. Minha real paixão era o direito de família. Compartilhava com a luta de nelson carneiro para um dia testemunhar a consagração da lei do divórcio. Pandora, por sua vez, cursava a faculdade de astrofísica. Sonhava ser astrônoma estelar. 

Tateio a parede à procura do interruptor. O silêncio e a escuridão do apartamento denunciam a ausência de pandora.  A luz do hall de entrada me descortina o bilhete sobre o aparador: “Seguimos, julinha e eu, com a vera lúcia para um antigo mosteiro em garibaldi. A ‘verona’ convidou um professor chileno, rolando toro, para difundir a novidade em terapia alternativa: a biodanza. Dizem que é um barato!  Pandora”.

Sei lá quem são vera lúcia, rolando toro e essa tal merda de biodanza. Que se fodam! Pandora sequer sabia do falecimento de meu pai! Agora compreendo porque foi frei josejoaquín quem me comunicou o óbito via telegrama.

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