A Oração De Tataia - José Alberto Silva - Litoralmania ®
José Alberto Santos da Silva
Colunistas

A Oração De Tataia – José Alberto Silva

Emagrecido, unhas grandes, meio sujo, derrotado, eu não reagia ao ambiente caído de rádio e TV ligada, geladeira aberta e vazia. Não via ou ligava para minha filha residente em cidade vizinha. Aposentadoria mortal. Abandonado pelas duas colegas em clínica psiquiátrica. Diziam que loucos parecem representar personagens e os normais fazem teatro de hospício. Meu caso à espera da Estévia, minha Oração e da Alegresse com sua linguagem pajubá, risadas e cavaco. Como estaria sua militância trans em Porto Alegre, Urubatã e arredores? Cada repetição desse filme acrescentava detalhes à minha sordidez.

Fui à casa de um amigo devolver um livro de Frantz Fanon. Abriu-me a porta uma amiga deles do Partenon, envolta num cobertor. O casal fez piadas com o frio que ela sentia. Elas foram à cozinha e a Oração voltou com pizzas fumegantes. Comentaram das qualidades culinárias da Oração. Serviu meu amigo e sentou-se a meu lado; sua oferta solene me constrangeu ao rubor. Um negro ruboriza, sim, ao sentir todo seu sangue subir à cabeça. Qual um Orixá que se apresente deu a forma como deveria chama-la:

 – Este molho – disse com intensidade na voz – é para comer em – Oração.

Colegas debocharam da ligação viva voz da Alegresse. Ao falar da ponte que fizera para jantar na casa da Oração, gostaram do meu paganismo. A Oração falou num grave tremido sussurrado para brindarmos seu olho castanho reluzente sobre sua pele escura. A Alegresse estava com um amigo com voz de camurça, como ela dizia. O ar era fragrância do vinho de garrafão, do perfume barato da Alegresse e da “bença” de condimentos. Eu queria o Fundo de Quintal, ela o rock do AC/DC. Nossa primeira desavença.

Estévia, musculosa, mãos de mulher que puxou arado. Por vezes bela, noutras bicho pré-histórico. Os pais eram escravos até a década de 60. Expulsas após morte do pai, a Oração e a mãe, em Porto Alegre, foram para o reduto negro do bairro Partenon, recomendadas a tomarem navio negreiro para a África. Anos depois voltou à Fazenda com a Alegresse pra rir com seu cavaquinho, meio à discussão com o velho vindo em navio branqueiro como ela, branca, pobre e homossexual. Foram avisar ao grileiro armado que o Diabo não vai esquecer ele eternamente. Expulsou as duas.

Alegresse de ruas, bibocas e visitas ao IML onde reconhecia irreconhecíveis na militância LGBTQIA+. Fronteiriços que parecem normais matam por contaminação político-cultural. Fazia a egípcia descontente para exclamar: aff! – ao falar da homofobia. Ninguém imagina, dizia, uma dor ou prazer sem experimentá-los. Emotiva, melodias a faziam e chorar. Superava portadores de livros sagrados com folhas envenenadas. Dissertava sobre Tenesse Willians e James Baldwin. Contou-me que um recém-liberto da escravidão, de nome William Swan, em Mariland (USA), rainha (queen) tratamento a homossexuais à época, “montou-se” de mulher e arrastava (drag) seu vestido. Criou o que temos por “Drag Queen”.

Foi um jantar de multisaborosas bolinadas. Para além das carnes da Oração minha mão chegou a seu ventre e espírito. Dias após, na Av. Salgado Filho, ela me radiografou com olho castanho reluzente. Sem jogar segui colegas pelo churrasco. Sagrados futebóis! Outros compromissados visitavam tataias ou tinham dois fogões. Exceto se tivessem filhos, à miúde vinham à público ou apareciam post-mortem de companheiros. Ela me atraia com bobó de camarão, atum branco com salada de papaia verde, belas sopas.

 – Donzela! – A expectativa amorosa fantasia incandescências. Pedi usufruto de suas maravilhas. Em gesto teatral ela ofertou a fogosidade de seu peito ao céu, à terra e a mim. Jantamos no Boteco do Caninha e ela dançou pra eu admirar. Pelo mútuo aquecimento do inferno, gelado para alguns, inverso do fogaréu com que se representa o centro da terra, com casacos, gorros, cachecóis, ela remexia suas roupas, ansiosa por livrar-se delas no Motel Decência. A partir daí nossos elementos compunham uma explosiva massa borbulhante que arfava ao pulsar, após o quê retomávamos nossa integridade individual, desencaixando flácidas dobras corporais, acrescidas de valores da alma.

Promovíamos jantar das tataias e passeios, até terem bebê. Tataia é a liberdade de ir e vir sem encargos da vida marital. Tratadas de “Tataias” e sem saber disto, para serem únicas até perdem a cabeça. Ameaçado, o sujeito desatina sua mão e ela lhe aponta uma arma; se não desarmá-la, nunca saberá se tal arma estaria ou não carregada.

Ao entrar no apartamento da Oração com Covid, ouvi bela voz que cantava. Num sofá de costas para a porta ao lado da cama da Oração, vi uma cabeleira negra estilo crespa. Parei na porta para entender e ouvir. Num salto a cantora se vira e grita:

 – Podes entrar, Bunito! – A Alegresse caiu na gargalhada, retirando a peruca crespa que usava. Eu quis saber que música e que língua seriam aquelas?

 – A música é Thula Thula – disse – canção de ninar na língua Isizulu, falada pelo povo Zulu, da África do Sul – E completou, saindo: – A tua cadeluxa jantou, tomou chá, está sem febre. Vou embora! Aff!

Cantarolei para Oração, acariciei seus pés para ela sorrir. Ela se restabelecia quando batizamos a criança num domingo de dança e churrascada, Chopp e samba batucado. Ela comprou o mandrião para o Batismo e odiou o sacerdote. A homossexualidade do padre com voz de camurça, como dizia, penteado com “Pega rapaz” traía a castidade. Disse que Deus rejeita cânticos à Santíssima pelos ocorridos atrás de altares cravejados de pedrarias roubadas. Todos sabem, dizia, dos processos de pedofilia no mundo, menos no santo Brasil. Teriam perdão se respeitassem o Congá!

Não acessávamos à casa de máquinas de nossa filha, sua consciência íntima. Era um travesseiro dizendo que respostas estão em nós. Malcasados, relação processada, pasteurizada, inverso da composição com Estévia, apesar da amarga distância. Da filha a Oração dizia reproduzir o distanciamento dos pais. A mulher prostrada e a filha, apática, não percebera a febre da mãe. Ardia como chapa de fogão à lenha, respirava mal na décima cepa do covid-19. Entubada, fodeu. Sem dinheiro para o funeral me socorri da Oração.

Sétimo dia na Igreja do batizado. Cabelinho armado, o padre injuriou a Oração. Minha filha foi morar com uma tia, trabalha e estuda. Como o amigo que juntou trapinhos com sua tataia após o filho, chamei a Oração às falas. Vamos para a Metrópole do Urubatã cercada dos distritos de Ipanema, Serraria, Aberta Morros, Belém Novo e Restinga; lá os ventos rugem de dia e ao anoitecer cantam rezas de perdão e louvores à misericórdia. Ela não teria mais de acenar com iguarias tipo salada com presunto parma e melão, ceviche beija-flor, quitutes que, aliás, nunca fazia. Eu voltava por qualquer alimento servido no salão nobre de seus seios. Ela veio e bateu na porta como coice de Polícia.

 – Nem que a vaca toque piano – disse ela, contrariada, já de pé.

Perguntou se eu sabia o significado de seu nome e quem cuidaria dela como ela cuidou da minha família? Que eu lhe aguardasse! A porta batida ressoava meu desalinho. Um dia espiei a janela e voltei para confirmar algo que me fez correr. Pensei tê-la visto chegar. Ela teria me avisado. Delírios. Despedira-se com impropérios. Voltava ao poço quando “senti” baterem. Assustei-me! Outro alarme falso? Segurei o ar de narinas em pé. Os três menores ossos do corpo humano cresceram a proporções dinossáuricas para ouvir batidas cristalinas. Chorei ao erguer-me do chão. Com malas e casaco no braço, o castanho de hospício de seus olhos reluzentes seria misto de carinho, desejo, censura e comiseração. Cessado meu choro disse que Alegresse me advogara de longe. Sacudiu a cabeça ao distribuir pela sala olhar de reprovação com o que via.

Dias depois, fomos a um Bar na Cidade Baixa dos velhos carnavais, da boêmia chique e decaída, da circulação de criminosos e tribos de gatos multicoloridos. Assistimos CORAÇÃO DE CAMURÇA. Show de Humor, canto e dança. Ouvi uma voz que não me seria estranha. No palco, a surpresa de ver Alegresse e seu cavaquinho, vestida com uma sotaina nas cores do arco íris e peruca crespa.

 – Cedilha! – informou a Oração. – O nome artístico da Alegresse é Cedilha.

Eu comemorava a paz com minha filha de telefonema diário, por estar bem e saber dela, antes disfuncionada pelos pais. A Estévia foi de tataia à multifrutuosa Rainha Doce. Ao tatear o grisalho de seu íntimo ventre e espírito, percebo em seu ressonar os perfumes de sua interioridade. Aguardo o amadurecer de sua fogosidade para desfrutarmos do que temos por tudo em abundância. Como nossa última desavença ela diz:

 – Mas para acreditar nisso, acho que preciso de um tataio.

José Alberto Silva.

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