A Praça e os seus tipos inesquecíveis
Fofoca, Pé-no-Chão, Toicinho e Garibotti, foram os lavadores de carros do período “pós-Bundão”. Da mesma forma que o antecessor, se abasteciam de água do “laguinho” da Praça para a lavagem dos automóveis.
Na esquina da Praça com a Rua Mostardeiro, ficava Capixaba, com sua banca de revistas e jornais, e a engraxar os sapatos de sua vasta freguesia. Sempre vestiu preto. Dizia-se “de luto pela humanidade”. Pregava que a Segunda Guerra teve por finalidade “calcificar a batata e dar maior cor à cereja (?!)”.
Cafuncho, Zeno, Xerife e Gambá dividiam uma maloca construída no campinho, um terreno baldio que ficava na Rua 24 de Outubro, onde é hoje um posto de gasolina. Amiúde iam à Praça. Jogados à própria sorte, porém, a ninguém ameaçavam. Sentavam nos bancos deixando o tempo passar e, no inverno, se aqueciam com o calor do sol. Pediam aos passantes um trocado para a cachaça, ou batiam às portas das casas e dos edifícios da Praça e arredores em busca de sobras de comida e um pouco de café.
Gambá ganhou o apelido não pelo que bebia — e não era pouco —, mas porque surgira na Praça Júlio, por volta do ano de 1956, trazendo sobre os ombros o próprio animal, o gambá, de quem não se separava. Compartilhavam, numa lata de Cera Parquetina a cachaça, paga pelos freqüentadores do Bar da Júlio, ávidos em ver o animal e o bêbado dividirem a bebida.
Defendia-se lustrando sapatos, além de confeccionar com habilidade em corda trançada, no formato de estrela de cinco pontas, emblemas nas cores do Grêmio e do Internacional. Seus fregueses mais fiéis eram os motoristas de táxi. Eles compravam o adereço para pendurá-lo no espelho retrovisor de seus automóveis.
Na Copa do Mundo de 62, após a partida entre Brasil e a Espanha, que a Seleção Brasileira logrou vencer, engraxando os sapatos dos freqüentadores do Bar da Júlio, Gambá, desorientado da realidade e movido pelo estado etílico, não cansava de repetir a mesma frase, contagiado pelo alvoroço da comemoração:
— Hoje foi com a hungra; amanhã é com a alemã…
Apaixonado por Percília, mulher que o abandonara, não conseguia ouvir o nome da amada. Sua reação era imediata: punha-se aos prantos. Aí mesmo que o pessoal mais implicava, sem se importar estivesse o pobre homem trabalhando.
— Aí, Gambá, e a Percília?
E o infeliz respondia:
— Aquela infame… filha da p… me abandonou… — e desandava num choro desmedido, permeado por longos soluços, a blasfemar contra a sorte, num crescente insuportável. Ao final da graxa, se essa custasse Cr$ 5,00, soluçando ante a lembrança daquela que o deixara, em tom agastado — como se o freguês fosse o culpado pelo seu desamor — cobrava, enraivecido, aos gritos: “… é 20 cruzeiros!”.
Furor mesmo ele fazia quando lhe roubavam a caixa que usava para lustrar os sapatos. Bastava um descuido e, quando percebesse, lá estava o material de seu ganha-pão pendurado numa árvore, inatingível, não pela altura, mas pelo seu estado etílico que lhe impedia qualquer escalada.
Quem mais infernizava a vida de Gambá era, ironicamente, seu afilhado, o moleque Adão, também engraxate. Com destreza e sem acanhamento, incitado pelo pessoal do Bar, às vezes por um troco, furtava a caixa do padrinho. A rua parava diante do escândalo promovido por Gambá. Logo se formava uma roda de passantes e de freqüentadores do Bar da Júlio em torno de Gambá, que ora pedia socorro a um, ora a outro, suplicando que lhe resgatassem a caixa. Quando percebia que não seria atendido, a todos insultava com palavrões: “cornos!… p…!”. Ou então investia contra a platéia, buscando agredi-la com socos e pontapés, que restavam perdidos no ar, pois a ninguém acertava. E a turma ia ao delírio, porque era o desatino de Gambá, por jocoso, o que todos buscavam ver. No meio da confusão, exausto, de repente parava, hipnotizado, a contemplar a caixa pendurada como um objeto inacessível. Logo saía do estado letárgico e perseguia a quem mais próximo estivesse. Com a corrida e a embriaguez, por vezes, desequilibrava-se e ia ao chão, esfolando-se. Erguia-se e empreendia uma nova investida, tudo sob o riso geral.
Certa ocasião, após ver sua caixa pendurada pelo afilhado num dos cinamomos na frente do Bar da Júlio, Gambá apanhou um grosso pedaço de pau, com mais de meio metro de comprimento. Escondeu-o nas costas, seguro pelas duas mãos postas para trás e convidava Adão, em tom afável, buscando dissimular a fúria: “… vem cá com o padrinho, vem… vem cá com padrinho, vem!”. Mas Adão se quedava insensível ao convite. Esperto, mantinha Gambá à distância; caso contrário, seria atingido pelo sarrafo que, de tão grande, se deixava entrever, atravessado, às costas do enlouquecido padrinho, denunciando-lhe a intenção de surrar o afilhado.