Colunistas

A sutil linguagem dos afetos

Faltava muito pouco para o amanhecer daquele domingo abafadiço e de nuvens carregadas prenunciando a chuva tão esperada quando me pus a escrever, em crônica, com as limitações de um escriba iniciante, o que seria sim, o meu confiteor, o mea culpa. Chegara há poucas horas da pequena cidade, no Vale do Taquari, onde sepultara meu pai.

Por quase oito anos, após aquele domingo de um março há muito distante, carreguei – ainda me pergunto: por quê? – um sentimento de que ficara em débito na rubrica dos afetos e das atenções para com aquele meu “véio” tão querido.

O fato de eu ser um homem ainda jovem, imaturo, buscando afirmação profissional e navegando no oceano revolto de um primeiro casamento em meio a relâmpagos e tempestades em nada justificava – a regra, aqui, é para todos – a “imperícia” no meu lidar com os afetos. Eu me via como o próprio centro do universo. Os demais que girassem em torno de mim.

Meu escritório, àquela época, ficava próximo à agência bancária em que meu pai trabalhava. Por força, porém, de sua agenda, o pouco que por ali passava era para dar-lhe um “alô” e confirmar – desnecessariamente – o infalível almoço dos sábados com ele e com minha mãe. Por conta desse habitual encontro – confesso – entendia dispensável qualquer telefonema a ambos em meio à semana, em horas determinadas.

Nos últimos meses de vida, meu pai se habituara, não poucas vezes, a deixar o Banco e sentar-se à minha frente no escritório. Ele mirava, sem qualquer pressa, a estante repleta de livros, o lustre que pairava exatamente sobre a máquina de escrever e conversávamos trivialidades.

Algumas frases eram por eles repetitivas, até. Em seguida, ele silenciava e retornava o olhar sobre a estante, o cortinado, enfim… Era a linguagem não convencional, a qual ele se permitia para “falar” do que lhe ia à alma, do que ele próprio antevia. Eu só fora a entender no percurso dos oito anos seguintes…

Minha mãe – por questões de saúde e de incapacidade locomotora – encontra-se numa clínica de repouso. Em minhas idas a Porto Alegre vou visitá-la. Saúdo-a com o mais alegre “oi, minha velhinha”. Ela abre um dos olhos e me contempla com firmeza, como se me expressasse desejos seus que ainda não consigo traduzir. Seguro suas mãos crispadas – apenas pele e osso –, lhe acarinho os ralos cabelos, beijo suavemente as faces incrivelmente quase sem rugas e digo-lhe algumas palavras. Não me responde.

Não sei se ela se apercebe de que eu realmente esteja bem à sua frente. Não importa. Eu sei de quem ela se trata. Assim sempre será. E, desta vez, não se fará necessário o espinhoso caminho de oito anos para, tardiamente, compreender que os afetos respondem a qualquer apelo.
Verbalizado ou não.

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