Arqueologia na Catedral de Osório: escavações podem desvendar mistérios do passado
Por Rodrigo Trespach
Fotos Tiago L. Trespach
Nos últimos dias um tapume de madeira foi erguido na lateral da Catedral Diocesana Nossa Senhora da Conceição, a Catedral de Osório. Faz parte do início da obra de remodelação do prédio de mais de 50 anos. Dentro do espaço em madeira, junto com pedreiros e outros trabalhadores, duas pessoas estão ali por motivos maiores que o arquitetônico: o arqueólogo Sérgio Leite e o aluno de História da faculdade local Toríbio Gubert. O professor e o assistente. O mestre e o aprendiz.
A missão ali é clara e definida. Sérgio Leite é o responsável pelo trabalho de inspeção da obra. Muitos não sabem, mas é lei, obras desse porte precisam de acompanhamento arqueológico. O fato de a Catedral estar localizada em um centro histórico aumenta a preocupação do arqueólogo com os possíveis materiais a serem encontrados que, sem assessoria correta, seriam descartados como lixo pelos menos capacitados. O arqueólogo é experiente no assunto, foi o responsável também pelo acompanhamento das obras no Theatro São Pedro, em Porto Alegre.
O projeto de remodelação da Catedral, do arquiteto Alencar Massulo, irá deixar o antigo prédio em um formato de cruz, com avanços nas laterais – o transepto. É, em um desses avanços, que visam aumentar o espaço interno da igreja, onde hoje se concentram os trabalhos, que os olhos experientes de Sérgio acompanham tudo. Dos dados levantados até agora nada de significativo. As primeiras perfurações, de um metro de profundidade, que serviram para levantar as “paredes” que mantém os mais curiosos longe do perímetro de atuação dos pedreiros, encontraram-se restos de pedra portuguesa, talvez de uma antiga calçada ou rua, ou ainda do prédio da igreja anterior, que segundo a bibliografia local, tinha um metro de espessura e era de “pedra-ferro”. Mas isso é só o começo, a expectativa ainda é grande.
Uma das lendas que cercam a Catedral é de que ela teria sido erigida sobre um cemitério indígena. Não se sabe quando surgiu à história, fato é que a lateral da Catedral realmente abrigou um cemitério, mas não indígena.
Era costume português sepultar as pessoas de famílias abastadas nas proximidades e mesmo interior das igrejas o que, do ponto de vista arqueológico, é muito interessante. Para Sérgio a área onde hoje se encontra a Catedral simplesmente não teria atrativo nenhum para um povoamento (pré-histórico ou pré-colombiano) indígena visto ser longe das lagoas e da encosta do morro, local onde haveria caça em abundância. Os assentamentos guaranis estão, por exemplo, onde hoje se localizam a Jazida Formiga – sítio arqueológico RSLN-01 – e a Fazenda do Casqueiro, próximo a Estrada do Mar.
Com a existência real de um cemitério, seja luso-açoriano, ou mesmo indígena, a expectativa de que sejam encontradas ossadas humanas é grande. Como o projeto de construção não prevê gastos significativos com a parte arqueológica o pesquisador já se prepara para solicitar apoio a comunidade e instituições de pesquisa interessadas. A primeira tentativa, a de aquisição de tubos que pudessem armazenar amostras de material para exames de DNA foi recusada. O encontro de ossada humana seria novidade nos sítios arqueológicos da cidade, onde apesar de comprovada presença humana nunca foram encontrados ossos, nem de ocupação lusa tampouco guarani. O fantástico na possível realização de exames de DNA seria o poder comparativo entre os antigos e atuais habitantes, para citar apenas uma das maravilhas dessa nova ferramenta a serviço da ciência.
A possibilidade de vestígios de a presença humana serem encontrados também é uma das expectativas. Caminho natural de tropeiros no século XVIII o subsolo de Osório pode guardar cerâmica, restos de armas brancas, ou mesmo de fogo, e outros utensílios usados pelos tropeiros. Não se descartando os vestígios pré-históricos já encontrados em sítios da cidade.
Na prática o trabalho realizado por Sérgio é interessante sob muitos pontos de vista.
A integração da comunidade é uma delas. Toríbio, que serve de assistente do professor como voluntário, acredita que a faculdade poderia apoiar de maneira mais ativa o projeto, indicando alunos para a participação ou mesmo viabilizando cursos de extensão voltados não só a arqueologia, mas a biologia e o próprio direito – a tão falada interdisciplinaridade.
Na realidade ele ainda luta pelo reconhecimento da faculdade para que sua atuação no projeto sirva como horas complementares. Sérgio Leite – professor de arqueologia – vai mais além, escolas públicas municipais, estaduais ou particulares poderiam – e podem – participar do projeto. A interação entre o que se faz como ciência e a exposição à comunidade é parte do processo de cidadania. A ideia levada a Câmara de Vereadores é que o local seja denominado “Área de Pesquisa Guido Muri”, em homenagem ao mais conhecido historiador osoriense, falecido no dia 14 de março, deste ano.
A cidade espera agora os resultados do trabalho de Sérgio e Toríbio, trabalho esse que pode durar alguns anos para ser concretizado – depende do andamento das obras de remodelação da Catedral. Espera também que as entidades ligadas à área da cultura e educação prestem o devido assessoramento, seja ele técnico, pedagógico ou financeiro. No Brasil, e o Litoral Norte não foge disso, ainda vale a máxima capitalista onde só há apoio quando existe retorno financeiro imediato. Não aprendemos ainda que o maior investimento e o retorno mais seguro é o da cultura e da educação.
Mais alguns dados
A primeira capela da cidade foi construída em 1772 por Antônio Gonçalves, ainda nos primórdios do povoamento luso-açoriano. A atual igreja, até bem pouco tempo chamada de Igreja Matriz, é do final da década de 1950. Antes pelo menos duas outras remodelações significativas ocorreram.
A igreja do final do século XIX tinha a torre do sino na sua lateral direita, na lateral da Rua Major João Marquês, exatamente o lado em que hoje se trabalha a remodelação e que a arqueologia aguarda poder atuar. Em 1909, a torre passou para o centro do templo e ali permaneceu por quase 50 anos, quando foi inteiramente destruída para dar lugar a atual.
Fato interessante para a época é que as paredes da atual foram erguidas ao redor da antiga antes que esta fosse destruída.