As crônicas de Aleph – Prelúdio nos quiosques do desassossego – Sergio Agra
PRELÚDIO NOS QUIOSQUES DO DESASSOSSEGO
Episódio I
“Sabemos bem que toda a obra tem de
ser imperfeita,e que a menos insegura
das nossas contemplações estéticas será
a daquilo que escrevemos”.
Fernando Pessoa.
Havia até alguns meses em Capão da Canoa — quando as “iluminadas” cabeças do executivo aldeão despertaram de um longo ostracismo cerebral sob o cutuco de órgão federal de que ali era área de marinha, portanto, era vedada a instalação em caráter permanente de ponto comercial — três quiosques entre o Calçadão e a faixa de areia que permaneciam abertos durante o ano inteiro. Nesses quiosques, salvo às segundas-feiras pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de bebuns e de apartes na vida. O desejo de sossego e a conveniência de preços mais “honestos” naquele dia da semana, sobretudo fora da temporada de veranistas, levaram-me, num período da minha vida, a ser frequente num deles. Sucedia que, quando me acomodava para degustar a cremosa e dourada Amstel, pelas dez, onze horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspeto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me. Era um homem que aparentava estar próximo dos setenta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestindo abrigo de moletom com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, perdas profundas, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito. Bebia sempre e apenas água de coco in natura. Reparava extraordinariamente para as pessoas que transitavam pelo Calçadão com um interesse especial; não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele. Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de aguda inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspeto que era difícil descortinar outro traço além desse. Soube por um dos garçons do quiosque, que o desconhecido fira professor universitário. Um dia houve um acontecimento no quiosque ao lado — uma cena de pugilato entre três sujeitos. Todos os que estavam nas proximidades correram, e eu também, e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. Ele informou se tratarem de três amigos, um conhecido construtor, o segundo contador e diretor do maior escritório contábil da região e o terceiro um político de “carteirinha”, em seu oitavo mandato, legislaturas essas sustentadas pelos votos de seu curral eleitoral, os parentes e os pescadores. Aliás, nestas bandas todos são parentes entre si, o que obriga aos mais distraídos pensarem muito no que irão falar ou comentar. Voltemos à pancadaria. Descobriram os três boxeadores, com o final do distanciamento social imposto pela pandemia da COVID-19, que durante o recesso “namoraram” e presentearam ao mesmo tempo com luxos e rapapés uma única e “recatada” mulher. Foram necessárias duas guarnições da Brigada Militar para apartar e “enjaular os brigões que destruíram praticamente o boteco onde até então alegres e amigavelmente lançavam-se em etílica libação. A voz do homem de quem eu falo era baça e trêmula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Não sei porquê, passamos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos à mesma hora, entramos numa conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei da Feira do Livro de Capão da Canoa e do esvaziamento que algumas desiluminadas cabeças do serviço público estavam a infligir ao evento. Elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos, vez que fora catedrático de Literatura Latina e Brasileira Contemporâneas na Universidade Federal. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem mais o interesse em ler livros dos quais se desfizeravdndendo-os aos sebos ou os doando a escolas e bibliotecas locais que os receberam como uma bolota de papel preste a ser jogada na lixeira. Então gastava as suas noites, no seu apartamento perto dali, escrevendo também. Nunca teve de se defrontar com as exigências do estado ou da sociedade. Aleph — permitam-me que o apresente — às próprias exigências dos seus instintos se furtou. Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes. Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas — apesar de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo — percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo, fiquei do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si — a publicação deste seu livro. Até nisto — é curioso descobri-lo — as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu caráter, lhe pudesse servir, lhe foram favoráveis. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
A chama literária em Aleph se acendera quando certo confrade de cátedra atreveu-se a incursões literárias publicando suas poesias no Caderno de Sábado, o suplemento cultural do extinto jornal Correio do Povo, ali escrevendo em versos suas reminiscências, o que vem a ser o mesmo que memórias, lembranças, rememorações, relembranças, anamneses, recordações.
Por isso Aleph — a quem conheço há pouco, tornamo-nos muito mais que amigos, camaradas e confidentes, em que pese tenhamos, por significativo espaço de tempo, percorrido diferentes estradas — não se desfizera destes topetes e, como me havia prevenido, para não se “auto oxidar” decidira colocar em prática o lúdico exercício do escrever, tomando como mote o que a princípio ele próprio havia conjeturado fossem as suas reminiscências.
Não fora, entretanto, o que realmente ele constatou já em meio à escrita!
Ao perceber que — o que ele havia planejado ser um comezinho adestramento de redação — o exercício adquirira a força vulcânica e as circunstâncias de febril, delirante e imprevisíveis dimensões, valeu-se então do meu socorro. Assim, à medida que Aleph — sou testemunha disso — de forma apaixonada, não poucas vezes tresloucada e anárquica ante a efervescente comoção com que ele se entregara à narrativa me confiava os calhamaços dos capítulos escritos à mão eu os compilava na ordem que julgara e entendera de relativa lógica e harmonia, emprestando assim ao texto fluidez e compreensão à sua leitura.
A realidade d’As Crônicas de Aleph, sim, é fundada na realidade objetiva, topográfica, geográfica, histórica, etc. de seu Autor, no caso, Aleph. Porém, a transposição dessa realidade para As Crônicas obedece a leis internas do conto e, sobretudo, à imaginação criadora deste “ghost writer”. Assim, alguns lugares e pessoas que pertencem ao universo d’As Crônicas de Aleph não correspondem mecanicamente a pessoas e lugares de minha vida real.
Permite-te viajar aos confins da alma de Aleph. Depois, no teu julgamento, me dirás se fui injusto para com meu antigo camarada: o Aleph, que irás a partir de agora te propor conhecer.
Ou não…