Bodas de quarentena - José Alberto Silva - Litoralmania ®
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Bodas de quarentena – José Alberto Silva

Bodas de quarentena - José Alberto SilvaBODAS DE QUARENTENA –

José Alberto Silva

Subestimamos a doença por equívocos que neste país nunca se explicam. Criticamos protocolos de isolamento social vindos da Idade Média por doenças contagiosas. A doença mortal abriu comportas da Pandora nacional para vicejar a corrupção.

O vírus riu das forças desarmadas e facções para combater quem pode mais. Passamos a temer até nossas calçadas. Só faltava a Esmeralda besuntar as paredes com Álcool em gel. Ouvíamos explosões e o crepitar de incêndios. vandalismos, acidentes ou moradores com raiva do vírus. Ninguém saía para acudir ou saber onde seriam as ocorrências. Por telefone, se funcionassem, sabíamos de tragédias. Ao sair de casa da próxima vez, veríamos cenário de pós guerra vistos em guerras civis jamais reconhecidos em nosso país.

Outro dia com uma colher de sopa com álcool em gel apontada pra mim, ela parecia mãe apontando remédio para o filho. Irritada sem querer estragar o clima de maio, me olhou com declarada comiseração e percebi nela o propósito, de uma vez passada a pandemia, criar o instituto jurídico da revisão do pacto casamentório.

Lembro nossos quarenta anos mais felizes e dos receios em não sobreviver até maio. O ruim de uma guerra é a morte de gente que não estaria na hora natural de morrer. Velhos morrem até de ventania. De causas diversas morrem muitos; ruins são as mortes de causa misteriosa que pode matar a todos. Grito-lhe juras de amor que nunca mais vou repetir e ela pergunta:

 – O que é, hein?

Segunda-feira tem ares de qualquer outro dia. Enjoamos dormir e comer sem culpa nem horário. Fingindo dormir estou em paz. Ideias de preguiça que não fazem dívidas, pensamentos que não levam a nada.

 – Café! – Disse ela terminando minha paz – Hoje tu vais trocar de roupas e dormir cedo.

Num gesto dela eu fui à mesa. Com roupeiro organizadinho, por uma semana usei a mesma roupa. Pobre roupeiro, guenzo que não pega nem cupim, um brinco; até pregado foi; tem minha idade. Se tirasse alguma roupa passaria de novo pelo inferno de misturar roupas sujas e limpas, lavar e reorganizar. Tantos produtos de limpeza que ao abri-lo exalava o cheiro da creolina e outros desinfetantes pra cachorro.

 – Não saia do portão!

Vou respirar à frente de casa sem atravessar as grades do Cadeião do Urubatã, ela passa a manhã em volta do fogão pra nós dois e minutos antes de sentar pergunta o que eu gostaria de comer.

Mais um mês de quarentena e não serei reconhecido: cabelos brancos, corcundas, pernas tortas e joelhos estourados, rugas e estragos gerais desta prisão. A Esmeralda, minha Rainha Doce, anda boazinha porque em maio faremos anos de casamento.

O dia ficou para o final do mês, ela queria no inicio por seus anseios para servir o meu café. Isolamento bem apropriado para um casal que se ama há 40 dias, meses, anos. Recebe o evangelho do dia e outras mensagens lidas em voz alta, olhando pra mim, não para salvar sua alma, sim para doutrinar meu santo espirito de hospício.

Lembra minha mãe ao me levar à Igreja ou a um centro espírita, para seu descargo de consciência por fazer o justo e necessário.

 – Bunito! Buniiitooo! – Ela chama e se volta para entrar: – Almoço!

Continuei andando de um lado a outro na frente de casa como cachorro preso por corrente.

 – A Fulanita – vizinha detestada por ela – passou aqui, te deixou mil abraços.

 – Não quero abraço nenhum daquela mulher. Fica pra ti! – Diz quase gritando.

Mensagens de engraçadinhos não abro na madrugada ao lado dela. Se acordar, vou dormir na sala e às 7 horas ela abre as janelas. Receio mal súbito no esforço para não rir, sacudo a cama que estremece e ela se revira no muxoxo rugido de uma onça. Evito me encostar, evito gritarias ou vou rir no fundo do pátio. Lembro os insones e entro levando um traço de riso no canto da boca para deixa-la encasquetada:

 – O que é, hein?

No almoço ela diz o horário que cheguei ao quarto, das vezes que levantei etc.. Pelo clima amoroso de maio não reclamo quando acordo assustado ao sentir o quarto tremer, vidros sacodem, o lustre balança; é quando ela solta seus puns! Não sei como a vizinhança não reclama; estrondosos, retumbantes venenosos!

Digo ver uma barata azul morta no meio de seus cabelos e ela ficou tensa. Pedi que fechasse os olhos que eu tiraria o enorme cadáver de sua cabeça. Ela se exclamava para dizer que lavaria os cabelos com água sanitária. Desconfiava que fosse gozação.

 – O que é, hein?

Ela levantou da mesa resmungando contra a morte da barata azul em seus cabelos e repetiu a ordem do dia:

 – Hoje tu vais trocar de roupas e dormir cedo.

Depois do almoço fui ao pátio, aquele quintal auto sujante. Durante o dia quero o relaxar da noite; à noite quero que amanheça por acordar com sonhos que parecem reais. Ainda queixosa da noite mal dormida, me chamou para o café da tarde com bolo de sobras de milho com sobras de leite de cabra verde e erva doce de uva passa. Devia ser 15:00hs. Esperei até as 18:00hs.

 – E o café sai ou não sai antes do temporal?

 – Dá pra esperar?

De tanto ver gente com cabeça em formato de Covid, comecei a vigiar a aparência da Rainha Doce e a evitar espelhos. Não comentávamos, por tabu, as pessoas cujas cabeças adquiriam a aparência do vírus com aquelas protuberâncias.

Eu espiava entre as grades do cadeião, pessoas irreconhecíveis pela gordura e outras deformações. Humanóides que emergem de alguma camada silenciosa da terra, escapados por fenda escavada por nós ou por eles.

Governo fantasma, comunicações em colapso, essenciais suspensos. Falta d’agua e luz. A criminalidade gratuita, perdera o sentido. Na invasão de residências nem comida valia. Enterros em praça pública. A Rainha Doce enchera latinhas de feijão e arroz de modo que se rejeitávamos tal prato por uma ou duas refeições, na terceira seria manjar dos Deuses.

Minha avó Ondina Machado dos Santos, nascida do ventre livre para ser ama de leite, reputava a fome como a melhor cozinheira.

 – Vamos ter um café ajantarado – diz ela.

Invenção de uma cunhada. Café às 19 horas dava numa janta ao quadrado. Um vizinho me aconselhou uma arma. Nunca lidei com armas. Um dia a Esmeralda acorda com as guampas tortas e me dá um tiro nos cornos. Ela já se cansou do meu assedio, noutros momentos, dispensou. Do nada diz que não a procuro desde que o homem pisou na lua. Quarenta anos! Só porque pintou o cabelo de vermelho e quer que eu pinte o meu de azul, pensa ter vinte anos e esquece que tenho quase oitenta de desgaste.

 – Tome banho antes do café.

 – Já tomei banho hoje, lembra? Além disto, vai chover.

 – Então, apenas passe uma “aguinha no corpo”.

Modalidade de banho criada pra mim. O asseio livra deste pandemônio. Um dos nossos meninos deixava a Rainha Doce furiosa com uma pergunta. Ao me mandar ao banho tive vontade de repetir: – Nós vamos sair?

 – Que banho rápido foi este?

Cansado da dormição acordei suando no meio da noite. Sonhos vívidos e intensos viram pesadelos até a Rainha Doce me acordar aos safanões. Eu não sabia com certeza se a transformação das cabeças das pessoas no formato do Covid era real ou coisa destes sonhos. Passei a mão em minha cabeça e desconfiei estar adquirindo aquelas protuberância no formato de coroa.

Levantei-me num salto e parei ao ver os espelhos do quarto cobertos com toalhas e lençóis. A Rainha Doce dormia o sono da mulher mais feliz do mundo. Em noites de temporal evitava assim a entrada de raios e trovões em nossa casa.

Dirigi-me a frente de um espelho na sala à meia luz. Vagarosamente comecei a remover a toalha que o cobria e recolhi toda coragem possível para ver em mim mesmo a figura gorda e com a cabeça de vírus em que me transformara.

Segundos eternos de tensão. Enfim, vejamos! Num movimento rápido arranquei a toalha do espelho, porém, eu não estava frente a frente com ele. Comecei a aproximação vagarosa, lenta e gradual.

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