Capítulo III da Série As Crônicas de Aleph - Litoralmania ®
Sergio Agra
Colunistas

Capítulo III da Série As Crônicas de Aleph

DESENREDANDO O PORÃO

Capítulo III da Série As Crônicas de Aleph

Quando a noite caiu em pleno dia sobre Porto Alegre e o temporal de chuva e vento se desencadeou, Aleph estava por completar quatro anos. Pesadas nuvens cobriram os céus e obrigaram os moradores a manterem acesa a chama das lamparinas como se noite fosse.

Vindo do rio um vento intempestivo e mormacento invadiu em remoinhos os becos e as ruas de Porto Alegre, fazendo bater portas e janelas, arrebatando de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais, erguendo as saias pregueadas das normalistas e lhes desmanchando o caprichoso penteado.

Esse vento ainda espargia as cinzas do incêndio que revoltosos haviam provocado nos estúdios da emissora de rádio situada nos altos do antigo Viaduto.

Essa estranha ventania que causara às pessoas um agourento presságio de fim do mundo convergiu para a Praça, defronte a Catedral, onde já se providenciavam os preparativos para a solene Missa de Réquiem ao Caudilho que nas primeiras horas daquela madrugada saíra da vida para definitivamente entrar na História.

Desde então, na semana que precede a data do aniversário de Aleph, a paisagem de Porto Alegre se transforma: o céu adquire uma tonalidade pardacenta, carregado de nuvens plúmbeas, como que se abaixassem e intencionassem afogar a terra. As luzes são acesas dentro das casas e o vento abafado domina todos os recônditos da cidade até concentrar-se no obelisco da Praça da Igreja Matriz.

Aquele não seria para Aleph um alvorecer diferente dos que a contar dos quatro anos anunciavam a data das celebrações de seu aniversário. Aleph — vencida a perturbada e mal dormida noite em que se revirou entre os lençóis amarfanhados em consequência do implacável assalto de fantasmagóricas visões, não sei se pelo negacionismo do “Tosco Birrento” ou da aterrorizante superstição suscitada pelo “Doriana Coalhado”, secundado pelo incauto “Leite Condensado” que anunciavam o Apocalípse com a irrecorrível e definitiva varredura de todo e qualquer vestígio dos seres vivos do planeta ante a chegada de um desconhecido, poderoso e letal vírus; houve quem buscasse a peso estratosférico de muito ouro os serviços e a intersecção junto a Oxalá, Ogum, Oxóssi, Xangô, Iemanjá, Oxum e Iansã, os Sete Orixás Cósmicos, de uma Yalorixá, conhecida pela suntuosidade megalômana de seus vinte Templos, localizados no Bairro do Lami, dos quais se destaca uma pirâmide de vinte e um metros de altura; católicos contritos acenderam velas e rogaram aos santos de sua devoção que os advogassem perante o Eterno pelo perdão às suas faltas; submeteram-se, ainda, ao suplício de galgar de joelhos os noventa e sete degraus das escadarias do adro da Igreja Nossa Senhora das Dores ou o de percorrer os 30 km que separam o Centro Histórico de Porto Alegre do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, onde se encontra o tumulo do Padre João Baptista Reus, a quem atribuem o dom de milagreiro, localizado na cidade de São Leopoldo; judeus, a cabeça devotamente coberta pela Kipá e os ombros pelo Talit, reuniram-se nas sinagogas em fervorosas preces, assim como os muçulmanos, por sua vez, recobriram suas cabeças com o Taqiyah, obedecendo as posições ditadas pelo Alcorão quando das orações. O Reveillon de 2020, como os de todas as Eras passadas, ao soar dos sinos nos campanários e do fascinante esplendor dos fogos de artifício que desenharam nos céus a diversidade de efeitos como a chuva multicolorida de estrelas, cometas, crisântremos, crakers e chorões anunciando a passagem da meia-noite de 31 de dezembro, irromperia radioso, trazendo consigo o indelével ciclo de renovação das esperanças. Os crédulos dos “poderes” da Mãe de Santo então constataram, apesar das dívidas contraídas com cartões de crédito e o saldo do cheque especial em vermelho quase roxo para honrar o compromisso assumido para com a aludida sacerdotisa, que o vírus chinês, independente de credos e religiões, rezas, lamentações, curvaturas e ebós, quinze dias após os festejos natalinos não apenas permanecia “vivo” como seu gráfico mostrou-se vertiginosamente ascendente. Aleph, eu reitero, vencida a perturbada e mal dormida noite, tomara a categórica decisão: ele abdicaria, a partir daquele dia do aniversário de setenta anos, da zona de conforto em que até então se mantivera albergado e colocaria um fim àqueles espectros que lhe perturbavam o espírito.

Posso dizer, sem pejos de vaidade, que em muito contribuí para tal propósito. Para ele este arbítrio se tornara imprescindível, vital: — descerrar as portas do porão para que dali eclodisse a sombra até então represada pelo ego. Aleph demonstrou a intrepidez necessária para mergulhar em si mesmo, na sua natureza sombria, e empreender a jornada de autoconhecimento, A sombra de Aleph— como a de cada um de nós — representa por um lado tudo aquilo que ele (e nós todos) “não gostaria de ser”. É na sombra que também guardamos ricos potenciais, pois ao nos identificarmos e vivermos um lado, o trazemos à luz da consciência, reprimimos pelo menos o outro lado na sombra. A cada escolha o ego deixa de viver muitas outras possibilidades que também se incorporam à sombra. Desta forma, a sombra guarda muitos potenciais que podem ser conscientizados, nos fornecendo novos recursos. Quando o ego toma uma posição unilateral ele polariza um lado em que se discrimina e se identifica, guardando no mínimo o lado oposto que também se polariza na sombra, seguindo o princípio da compensação.

Recordo-me daquele dia não tão distante em que ouvi de Aleph, como se ele estivesse falando para si mesmo: — “Vou voltar àquela casa, sem dia e hora definidos. Será preciso, sim, que eu abra aquela arca… para que nada mais fique aprisionado no porão…”.

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