Como a escolha de Sofia – Sérgio Agra
COMO A ESCOLHA DE SOFIA
“…Vossos filhos embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
porque eles têm seus próprios pensamentos.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como Ele ama a flecha que voa,
ama também o arco que permanece estável”.
Khalil Gibran, in excerto de poema de O Profeta.
Das famílias das nossas relações — as dos vizinhos, as dos colegas de trabalho, as dos amigos ou simplesmente as dos conhecidos —, afianço, elas ultrapassam a dezena que viram os filhos partirem para terras estrangeiras em busca de seus sonhos, de suas realizações pessoais e profissionais e se tornarem mais tarde cidadãos australianos, neozelandeses, alemães, ingleses, italianos ou lusos. Eu próprio incentivei meu filho, afirmando-lhe que se tal decisão tomasse seria eu próprio a transportar as malas até o aeroporto. Hoje, sei que aquela bazófia de pai não passava de mera teoria. Isso, respondo por mim. Já meu irmão e minha cunhada lidaram naturalmente com a determinação de minha sobrinha que atualmente reside em Lisboa.
Fosse eu pai, não de único filho — diria, até — de meia dúzia e destes somente um se dispusesse a partir meu sentimento seria o de igual “aperto” na alma.
Já bateu na porta de muitos desses mesmos pais o dia em que a aposentação se mostrou compulsória, o mercado de trabalho para “engordar” a renda — à exceção de motorista de aplicativos — inexistente para os acima dos sessenta anos de idade ou as perspectivas de longas viagens de lazer, da prática desportivas que o tempo livre merecidamente conquistado ensejaria não se corporificaram, quer por impedimento em razão das condições impróprias da saúde física — ou, simplesmente, por diletante e voluntário sedentarismo, como é o meu caso —, quer por não ter o gosto para atividades intelectuais como a leitura de bons livros, do aprendizado de idiomas estrangeiros ou, ainda, dos experimentos dos até então ocultos dotes culinários, abrem-se brechas para que essas ausências ganhem atrozes dimensões.
A realidade dos filhos distantes, separados pela imensidão oceânica e, o pior, dos simplesmente ausentes, alimenta o fantasma da solidão e do “quem irá cuidar de mim?”. São estas últimas circunstâncias as que neutralizam os mecanismos de defesa de todo ser humano, máxime o idoso, provocando-lhe um sentimento de impotência e de despido do significado que ele algum dia possa ter sido. Baldada, pois, a promulgação de estatutos que jamais suprirão a carência dos afetos e dos desvelos.
Desconheço quais sejam os ritos de passagem dos idosos em distintas épocas e civilizações. Lembro, no entanto, que os esquimós “acomodavam” seus velhos pais sobre um pequeno bloco de gelo e o lançavam ao oceano para que “viajasse” ao sabor das marés ou os conduziam para as planícies geladas para serem devorados pelos ursos. Assim fazendo acreditavam que os pais seriam reincorporados na tribo quando o urso fosse abatido e devorado pela comunidade.
A expectativa de vida dos brasileiros, notadamente na Região Sul é de 80 anos de idade. Mas qual realmente é a “qualidade de vida” desses homens e mulheres que alcançam e, cada vez mais, ultrapassam este marco?
Minha mãe viveu até os 88 anos ingerindo concomitantemente mais de dezena de medicamentos. Era portadora de relativos óbices de equilíbrio, de mobilidade e de perda quase total da memória. Meu irmão e eu resistimos até o extremo para que ela permanecesse no conforto e no aconchego de sua própria casa, sob as atenções de duas cuidadoras. A sucessão de acidentes domésticos — que resultou na fratura dos membros superiores, passiva de procedimento cirúrgico de risco — fora fator decisivo para que optássemos por uma clínica de repouso.
Em que pesem as incansáveis pesquisas, avaliações e consultas in loco em cada uma dessas casas especializadas — que resultaram na escolha da clínica localizada em bucólico bairro de Porto Alegre e com o atendimento mais do que exemplar — aquele momento transfigurou-se no “ritual” dos esquimós.
A ninguém, estranho às circunstâncias de quem isso vivenciou, é dado o direito de juízo, sequer a possibilidade de mensurar a dor que transpassa a alma de quem cabe a decisão.
E não nos encontrávamos distantes, menos ainda fomos ausentes.