De trem e clandestinos – Sergio Agra
DE TREM E CLANDESTINOS
Capítulo XVIII Da Série As Crônicas de Aleph
A viagem por trem — o Minuano ou o Pampeiro — para Santana do Livramento partia às 7 horas da noite com chegada prevista para as primeiras horas do amanhecer do dia seguinte. Eram trens-leito dotados de restaurante e bar. O Pampeiro, diferentemente doMinuano, possuía cabines-leito, o que guardava maior privacidade aos seus ocupantes. Um destes dormitórios seria ocupado por Aleph e Maria do Carmo.
Após se acomodarem os dois finalmente puderam trocar um longo e silencioso abraço. Aleph demostrava temor pelo futuro de Maria do Carmo, — “Como sairás ilesa disso tudo?”. Ela foi resoluta, — “Ouviste as instruções que o Agnostopoulos nos passou. E conto contigo para isso!”. Aleph não conseguiu disfarçar a insegurança, — “A mim os arapongas desconhecem, ainda que eu já esteja metido nessa loucura — fazer o quê? —, mas e tu?”. Maria do Carmo pacientemente expôs-lhe uma vez mais o plano e o quê exatamente deveria ser feito. Na derradeira tentativa de demovê-la desse desatino Aleph preveniu, — “É arriscado demais!”. A jovem foi taxativa, — “Sei que é, mas tudo vai dar certo!”. Aleph estava aturdido, mas agora era tarde para desistir. Ademais, tratava-se de uma questão de honra pôr a salvo a vida daquela audaciosa mulher.
Aleph auxiliou a companheira a se acomodar no aconchegante leito. Uma réstia do débil sol primaveril penetrava por entre as frestas do cortinado iluminando parte do rosto de Maria do Carmo. Ela estava extenuada. Sua fisionomia estampava por vez primeira o temor ante as incertezas do seu futuro. Aleph percebeu os conflitos que traspassavam a alma da amiga. Mirando-a com ternura ele foi hábil ao evocar, — “Tenho uma dúvida que até hoje me persegue: a história de Fedra…”. Premeditada ou não, a estratégia de Aleph fora feliz. Maria do Carmo esboçou o mesmo sorriso moleque daquela tarde no pátio da escola, durante o recreio, — “Não esqueceste, tampouco acreditaste na história?”. Aleph foi incisivo, — “Houve, sim, muitos momentos em que eu queria acreditar. E quanto mais eu pensava realmente te conhecer menos sabia quem era a verdadeira Maria do Carmo”. Sorrindo ela rebateu, — “Ou quem era Fedra?…”. A jovem brincava com a curiosidade do amigo, — “Me tens como uma esfinge?”. Ele assentiu, — “Era decifrar-te ou me devoravas…”. Maria do Carmo provocou, — “E?…”. — “Nem uma coisa, nem outra”. Ela duvidou, — “Medo?”. Havia um misto de indignação nas palavras do rapaz, — “Por que razão eu teria medo?”. Maria do Carmo tornou a desafiar, — “De te confrontar com a verdade”. Aleph reagiu ao golpe, — “Sempre lidei bem com minhas verdades”. A fugitiva passageira discordou, — “Não é verdade!Sabes muito bem disso!”. — “E para ti? — questionou por sua vez Aleph — Qual é realmente a verdade?”. Maria do Carmo mirava contemplativa a morrente luminosidade que teimava penetrar pelas frestas das cortinas, — “Aleph, quanto tempo ainda nos resta viver eu não sei… Tenho dúvidas de que esta viagem chegue ao final planejado— uma sombria interrogação sobreveio no olhar da ativista — O que virá? Camaradas estarão mesmo esperando por mim em Rivera? Ganharei passaporte com outro nome que não o meu? — Ela encarou o amigo, — Irei para o Chile, mas até chegarmos à fronteira estaremos correndo o risco de sermos presos. — O olhar perdido de Maria do Carmofixou-se em ponto indeterminado — “Poderemos, quem sabe, viver até os setenta, oitenta anos e adormecer suavemente numa cadeira de balanço, mas nada vai superar o que já vivemos, pois apesar de toda a dor e sofrimento foram os nossos anos dourados e estes ficarão gravados a ferro e fogo em nossas memórias. Tudo, Aleph, tudo!
O silêncio somente era rompido pelo clamor das bielas e dos carris do trem sobre os dormentes. Aleph amparou Mariado Carmo em seus braços, afagando-a com extrema delicadeza. Beijou com ternura os cabelos, as têmporas, os olhos e as faces da amiga. Ele o fazia com desajeitamento. Os lábios finalmente se encontraram na infinitude do beijo há tanto tempo reprimido. A pressão macia do frágil corpo de Maria do Carmo e o regaço movediço de fêmea carente buscando o sexo de seu macho fora a confirmação de que ela desejava, ainda que fosse o último ato de sua vida: ser amada por aquele leal e antigo amigo. Maria do Carmo desabotoou a jaqueta e em seguida desceu o zíper da calça jeans. Ambos desconheciam se o repique que escutavam eram os do sino de alguma pequena estação ou simplesmente fruto da fantasia. Nada mais lhes importava. Os sentimentos encarcerados durante aqueles anos todos jorraram feito gotículas de orvalho sobre os lençóis do estreito ninho e iluminaram os céus da longa noite que se antecipava ao confronto com a clandestinidade e o banimento daquele então silencioso e entristecido Brasil. Inebriada de felicidade Maria do Carmo por fim adormeceu nos braços do amante. Cuidando para não despertá-la Aleph pousou a cabeça da amiga sobre o travesseiro e cobriu seu pequeno corpo com a manta. Não pôde evitar o sorriso ao lembrar o dia do primeiro encontro e a fantástica história de “Fedra” narrada pela doce amiga que agora seguia para um destino incerto.