Colunistas

De trens e clandestinos

…encontraram-se na infinitude do beijo

tanto tempo reprimido…

Ao repique do sino da estação, o trem, com um apito prolongado, deixou a gare em marcha lenta. Após cruzar a ponte de ferro sobre o rio Gravataí, acelerou, ganhando, finalmente, maior velocidade. Dispostos num dos cantos do imundo vagão de carga, uma dezena de imensos engradados, diligentemente acolchoados em palhas,  encerravam finíssimos jogos de mesa em porcelana e cristal, vindos de Blumenau. Miguel transpôs com extremo cuidado aquelas armações e constatou que, entre um engradado e outro, havia espaço suficiente para que ele e Clara pudessem se acomodar.

Seria bem mais prudente, ainda que logo se fizesse noite, os dois não ficarem expostos aos riscos de uma eventual revista no vagão. Miguel auxiliou a companheira a transpor as caixas. Extraiu chumaços da palha que forrava a frágil carga e engendrou, da melhor maneira que pôde, o que seria o leito tosco com que enfrentariam a longa viagem até Uruguaiana. 

             Clara estendeu sobre o piso forrado com as palhas a manta que retirara da mochila, a qual havia apoiado ao tabique lateral do vagão, transformando-a, por sua vez, em travesseiro. Uma réstia de sol penetrava pelas frestas do carro de carga, iluminando parte do rosto de Clara.

             Ela estava  extenuada. Sua fisionomia estampava, pela primeira vez, o temor ante as incertezas do seu futuro. O sofrimento imposto nos últimos dois meses esgotaram-lhe os derradeiros resquícios da segurança e da lucidez com que sempre agira. Miguel percebeu todas os conflitos que traspassavam a alma da amiga.  Mirando-a com ternura, ele foi hábil ao evocar:

         Tenho uma dúvida que até hoje me persegue: a história de Fedra.

            Premeditada ou não, a tática de Miguel fora acertada. Clara esboçou o mesmo sorriso moleque daquela tarde no campinho.

           Não esqueceste a história? E tampouco acreditaste nela?

           Não. E quanto mais eu imaginava te conhecer, menos sabia quem era a verdadeira Clara.

           Me tens como uma esfinge?

           Quase! Era decifrar-te ou me devoravas.

           E?…

           Nem uma coisa, nem outra.

           Medo?

           Medo? Por que razão eu teria medo?

           De confrontar as tuas próprias verdades.

           Sempre lidei bem com elas.

           Não é verdade! Tu sabes disso.

           E tu, o que sabes?

           Miguel, quanto tempo ainda nos resta viver eu não sei Clara  olhava, sem, no entanto, se fixar em nada, a tênue luminosidade que ainda penetrava pelas frestas. Tenho dúvidas de que esta viagem chegue ao seu fim. E o que virá depois? Outros companheiros estarão esperando por mim na Argentina. Terei passaporte com nome falso. Irei para o Chile. Mas até chegarmos à fronteira, estaremos correndo o risco de morrer crivados de balas. Poderemos, quem sabe, viver até os setenta, oitenta anos e adormecer suavemente numa cadeira de balanço. Mas nada vai superar o que já vivemos. Apesar de toda a dor e sofrimento, foram os nossos anos dourados. Eles ficarão gravados a ferro e fogo em nossas vidas. Tudo, Miguel! Tudo! E não é apenas a nossa luta armada, tu compreendes?

           O silêncio era somente quebrado pelo clamor das bielas e dos trilhos sobre os dormentes. Miguel tomou Clara em seus braços e acariciou-a com extrema delicadeza. Beijou-lhe com ternura os cabelos, as têmporas, os olhos, as faces. Ele o fazia com desajeitamento, não lhe era fácil acomodar-se naquele ínfimo vão entre engradados no vagão de um trem. Pouco a pouco os beijos foram tomando gosto e os lábios, finalmente,  encontraram-se na infinitude do beijo tanto tempo reprimido.

    A pressão macia do corpo de Clara e o regaço movediço procurando o sexo de Miguel era a confirmação de que ela queria ser possuída. Ele desabotoou a jaqueta e, em seguida, desceu o zíper da calça de couro que ela vestira para a longa  viagem.   Desconheciam  se o repique dos sinos que escutavam eram o de alguma pequena estação ou, simplesmente,  fruto da fantasia. Nada mais lhes importava.

    Os sentimentos encarcerados durante aqueles anos todos brotaram ali, no poeirento vagão e na longa noite que se antecipava à dor e ao confronto com a clandestinidade e a expatriação. 

           Clara adormecera nos braços de Miguel. Cuidando para não despertá-la, ele a acomodou sobre o leito de palha. Depois, cobriu-a com a manta e  beijou-lhe a testa. Relembrou a história de Fedra. 

            Para Miguel, Porto Alegre se mostrava como uma cidade fria e desconhecida. Ele não possuía amigos, fora alguns poucos do Grupo Escolar,  para as brincadeiras de bola no campinho. Assim, foi com desconfiança que a viu passar pela terceira vez à sua frente. Miguel a observou: deveria ter uns onze ou doze, não mais. Era bonitinha, loira, cabelos em cachos escapulindo do gorro de lã que fazia conjunto com o suéter. A saia era plissada e as meias de colegiais até os joelhos. Nunca a vira por ali. O mais conhecido dos agregados de Machado de Assis se ali se encontrasse, certamente, confidenciaria ao pé do ouvido de Miguel, Veja, ela tem olhos de cigana oblíqua e dissimulada. A cor era de um verde como as profundezas das águas do oceano, e de uma força que arrastava para dentro.

            Você  mora perto?, ela perguntou. Miguel sequer olhou para a recém-chegada, continuando as embaixadas com a bola. Ela sorriu, Hei, você é sempre desligado? Não, claro que não! Ela abandonou a bicicleta na grama e andou devagar, jogando um pouco os pés, como se quisesse brincar com a bola. Perguntou se podia sentar ali. O menino fez um gesto afirmativo com a cabeça. Ela pôs-se em posição de Lótus, Você mora nesta rua? Sim, no 512, aquele edifício de sacadas verdes. Mudamos ontem, ela explicou, Papai é juiz e foi promovido, compramos o sobrado da Travessa Vespúcio de Abreu, tem até terraço com jardim. Sei qual é, foi ali que houve um crime. Os olhos da menina brilharam, Crime? Miguel sentiu o inusitado prazer em assustá-la, foi horrível, bárbaro, uma tragédia! Me conta! Ele fingiu escrúpulos, Pra você ter pesadelos? Não sou a menininha mimada que você está imaginando. Depois, conto uma história, aposto, bem mais terrível, que ouvi de minha tia. Agora, me conta, vai, quero saber a tua história.

            Miguel descreveu a tragédia dos irmãos Iago e Desdêmona. O menino encontrara o revólver do pai, capitão do exército. Chamou pela irmã. Entregando-lhe a arma, disse que fizesse de contas que ele era o inimigo. Desdêmona disparou. O projétil atingiu o pequeno Otelo, que dormia no bercinho.

            Findo o relato, a garota pôs-se em pé  e num tom de voz que denotava superioridade, Eu apostei que a minha história seria de arrepiar, está preparado para ouvir? Miguel fez um sinal afirmativo com a cabeça. E ela, com exagerada dramaticidade, narrou a história:

            Fedra, trinta e dois anos, divorciada, duas filhas, compelida a morar com a mãe, dona Cassandra, viúva do desembargador Heitor Caio de Castro Neto. O magistrado, um ano antes, desgostoso com o amante, um nigeriano lutador de catch, que o abandonara para viver com um oboísta da Orquestra Sinfônica, empalou-se com a lança que decorava a garçonnière, na Rua da Praia, expelindo sangue no alvo carpete até morrer. Fedra amava a noite, vivia-a intensamente. Ao meio-dia acordava, às duas fazia o desjejum e ceava perto da meia-noite. Olhos congestionados, dirigia feito doida, ultrapassava com sinal fechado, buzinava e dobrava à esquerda em locais proibidos, dizia palavrão. Enturmara-se, quando jovem, com os socialites do Juvenil. O “barato”, nos festins privées, era consumir ácido lisérgico,  um alcaloide vegetal, cristalino, alucinógeno que, afirmavam, os levava ao Olimpo. Conheceu a conta bancária de Demétrio Berthé, namorado de uma amiga de clube. Tomou-o e aprovou-lhe, com louvor, a bilunga. Casaram. Descobriu-se traída. Na tarde invernal, num hotel à beira-mar, com o parceiro de tênis de Demétrio, devolveu-lhe a moeda. As madrugadas transfiguraram-se no oásis das amarguras de Fedra e os botequins nos palcos, nem sempre iluminados, das bebedeiras e dos escândalos que ela encenava. Certa feita, sequer alcançou o toalete. A dor lancinante, na altura do ventre, a desabou por sobre mesas e cadeiras. O divórcio e a bancarrota do ex-marido a empurraram, com as duas filhas pré-adolescentes para a companhia da mãe. Dona Cassandra, que, até então, nunca se fizera ouvir, iniciou as impúberes netas nos segredos da alcova. Mais tarde, trouxe de Dom Pedrito duas viçosas sobrinhas de doze anos. Fez melhorias na casa, aumentou a adega de vinhos envelhecidos e os lucros. Selecionou a clientela, regalada por dadivosas ninfetas com seios túrgidos que sugeriam a polpa de uma romã. Fedra, ex-mulher, percebeu, no leito da UTI, sua vida desfilar como um antigo filme em branco e preto.

            Miguel e a nova companheira mantiveram-se em silêncio por um longo tempo. A menina apanhando novamente a bicicleta, Não falei que você ia ficar arrepiado?, aparece lá em casa, já somos donos de um aparelho de televisão. papai encomendou uma Standart Eletric nas lojas Ibraco. Finalmente, Miguel se desvencilhou do mutismo, Hei, eu nem sei como te chamas? Clara…    Clara Chagas Lemes. A garota retomou a bicicleta e se foi, sem se aperceber que deixara, ali no campinho, um Miguel boquiaberto, hirto, indagando a si mesmo onde aquela pretensiosa desencavara uma mentira tão deslavada como aquela. Ou seria, mesmo, tudo verdadeiro? 

           Amava aquela mulher, sua primeira grande amiga. Possuíam, agora mais do que nunca,  coisas em comum, desde o primeiro e furtivo beijo em frente ao aparelho de TV, sob a guarda ineficaz da Dindinha que cochilava sobre um frágil mocho. Recordou-se das reuniões dançantes, das matinês dos domingos, do primeiro cigarro de maconha que Clara lhe trouxera e do encontro com a violência e o desrespeito, impostos pelo regime de exceção vigorante. Descortinou na memória as passeatas e a panfletagem, a fuga da polícia. Nunca imaginou, porém, que Clara fosse tão longe. Era, de fato uma mulher corajosa. Uma grande e bela mulher. Ela, que lhe fora tão próxima, somente naquela noite de fuga, rumo à fronteira, no vagão de carga de um trem e na condição de clandestinos, ante o horizonte em que apenas se descortinavam as incertezas, o perigo e a violência, desfizera-se do manto de esfinge, como ele, Miguel, a concebia. Clara havia, finalmente, lhe revelado os segredos do seu corpo e os sentimentos de sua alma. Descobrira o amor. E agora este amor partia para um destino absolutamente ignorado.

               As primeiras luzes do dia surgiram por detrás dos capões. Pouco faltava para chegarem à estação de Alegrete. Clara ainda dormia. Miguel transpôs os engradados. Abriu levemente o corrediço e distraiu-se com a paisagem que avistava através da ínfima janela do vagão de cargas.  O céu, sem nuvens, confirmava as previsões de estiagem. O verde das coxilhas e a mansuetude com que os tropeiros conduziam os rebanhos pelas pradarias transmitiram a Miguel, ao mesmo tempo. a impressão de paz e de solidão.

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