De volta ao passado - Episódio III - Sergio Agra - Litoralmania ®
Sergio Agra
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De volta ao passado – Episódio III – Sergio Agra

DE VOLTA AO PASSADO

Episódio III

“O poema que eu sonho não tem falhas

senão quando tento realizá-lo.”

Fernando Pessoa

De volta ao passado - Episódio III - Sergio Agra

Mamãe nasceu onde o mais belo pôr do sol do planeta se reflete nas águas do rio que não é rio, o Guaíba. A cidade ainda guarda orgulhosamente o reconhecimento que lhe empresta a exuberância do verde em quase todas as suas ruas: Porto Alegre! Minha mãe morou quando menina na antiga Rua do Arvoredo.

No coração do mapa desta cidade há um imenso horto, o Parque Farroupilha. O Parque — minha mãe não se aborrecia em contar tantas fossem as vezes que eu lhe pedisse, ainda que outra não fosse a sua própria história — surgira em razão da grandiosa e fantástica Exposição do ano de 1935, comemorativa ao Centenário da Revolução Farroupilha. Onde antes eram banhados e os Campos da Várzea ou Redenção, estes, depois de aterrados, cederam lugar para o cenário daquela Exposição.

Deslumbrado, o olhar ainda infantil de minha mãe testemunhara — ali, no Parque Farroupilha, carinhosamente até hoje saudado por todos como o Parque da Redenção — o erguimento das lonas do Gran Circo Sarrazani e se acenderem as luzes multicoloridas do carrossel de cavalinhos, da montanha-russa, do chicote-maluco, do trem-fantasma e das barracas de jogos do parque de diversões que integrava a trupe circense. Num misto de excitação e temor, minha mãe encantou-se com a vista do alto das frondosas copas dos eucaliptos, das torres das Igrejas do Divino e do Sagrado Coração de Jesus, e dos telhados do casario do Caminho do Meio e da Baixada dos Moinhos de Vento. A província desfazia-se da casca que até então a envolvera. Mostrava os primeiros sinais de uma metrópole atrevida que em pouco tempo viria ser.

A Europa contava seus mortos e saía dos escombros deixados pela II Grande Guerra recém-finda. Naquele mesmo ano minha mãe concluíra o curso normal. A Sociedade Ginástica, engalanada, abrira os salões para o grande baile das formandas do Instituto de Educação. Dançando ao som de um bolero, levada pelo passo discreto e suave de seu par, minha mãe descobriria as primeiras emoções da paixão. O jovem alto, trigueiro, com o sóbrio timbre de voz que demonstrava sua origem interiorana, fizera minha mãe pairar por sobre os demais pares bailarinos. O que a atraíra — naquele homem que, mais tarde, viria a ser meu pai — fora o austero semblante, o que o diferia dos álacres e descomprometidos infantes que ali se encontravam.

Papai viera do interior. Hospedara-se numa pensão na Rua Clara e frequentava um curso para formação em Contabilidade. O estudante, que não era dado a festas e muito ajuntamento, somente fora àquele baile por insistência de Juvenal B., com quem dividia o quarto de pensão. Não resistira, no entanto, como ele mais tarde fizera questão de confessar, à boniteza suave do rosto de minha jovem mãe. Haveria de, ao menos, dançar uma marca com a moça. Aos primeiros acordes do bolero Tres Palabras meu pai a convidou para a contradança.

Bailaram aquela noite toda… e por trinta e dois anos de suas vidas…

Meu pai mostrara-se desde menino um ser circunspecto. Era econômico no discurso. No entanto, ao falar ou emitir juízo, ninguém o contrariava tamanha a prudência, a sabedoria contidas em suas palavras e a antevisão que tinha dos fatos. Desde cedo, criara-se nas ruas de Taquari.

Ele não estabelecia diferenças dentre os companheiros das peladas nos campinhos da várzea ou das pescarias e mergulhos nas águas frescas do rio que margeia aquela cidade. Por tudo isso, e o seu temperamento discreto, meu pai agradara em cheio o futuro sogro. Este fizera gosto do namoro da filha com aquele interiorano esforçado.

Não se cansava em recomendar à minha avó para que ela dali por diante se esmerasse nos almoços dos domingos: — “Capricha no assado e no molho da macarronada, que eu não quero esqueleto pra noivo de nossa filha”. E, com satisfação, desarrolhava o tinto que generosamente servia para si e para o futuro genro.

No dia 14 de maio, quando Israel era reconhecido pela Assembleia Geral das Nações Unidas como estado independente, meus pais subiram ao altar da Igreja do Santíssimo Sacramento.

Na mesma noite meu pai ajeitou os de seu na única mala, transferiu-se para a casa do sogro e ali viveu por cinco anos, até obter aprovação no concurso para Auditor da Fazenda Pública, Três anos após, numa fria e úmida tarde de sábado de agosto meu primeiro berreiro ecoou nos corredores da Maternidade de São Francisco.

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