De volta para casa – Sergio Agra

Sergio Agra

DE VOLTA PARA CASA

(Narrativa de Aleph)

Capítulo XI da Série As Crônicas de Aleph

Faltam pouco mais de cinco horas para o horário previsto para o embarque no voo que me levará de volta para Porto Alegre com conexão no Rio de Janeiro. Encontro-me em Lisboa, no quarto de um hotel com vista para uma grande praça. Ontem foi feriado nacional no Brasil. Houve grandes festas na Embaixada. Ao banquete seguiram-se as danças ao som de Sergio Mendes & Brasil 77. Mesmo revestido da devida formalidade, percebi que o convite que me fora feito por telefone, ainda que veladamente, destilava tibieza, Por óbvio, deixei de lá comparecer. Sou, ainda que passado tanto tempo, persona non grata, em face de meus antecedentes durante os trevosos anos do regime militar, até mesmo para o mais comezinho dos adidos daquela recalcada delegação que ainda trazia em si inoculado o vírus opressor da implacável ditadura.

Espio — quem sabe? — por vez derradeira a milenar, encantadora e, para mim, sempre desconhecida cidade que ora dorme. São quatro horas da madrugada, não clareou ainda. Perdi o sono às duas; acordei com o pensamento distante dos detalhes e das coisas que me cercam no cotidiano das últimas manhãs. Coração e mente reavivavam imagens empoeiradas pelo tempo. Rostos anônimos desfilavam como num filme ensombrado na tentativa de me recordarem pedaços que um dia eu deixei pelos caminhos: a palavra dita, o sorriso ofertado, a mão estendida e o ombro amigo que acolhera e preenchera carências. Vinicius de Morais já o dissera: — “… ao voltar, quero me regalar com papos de anjo, daqueles que só a mãe da gente sabe fazer, daqueles que se o sujeito for mesmo honrado, só deve comê-los metido num banho morno, em trevas totais, pensando no máximo da mulher amada…”.

Meu desterro fora um fato consumado. A anistia, não obstante, está em longínquos horizontes. Não há papos de anjo, banhos mornos em trevas totais. Não há quem me ouça e me fale de como verdadeiramente se encontram as coisas no Brasil, em Porto Alegre. Visto a fantasia de um rábula do diabo em causa própria. De meu só tenho a imensa e dolente saudade daquele pedaço de chão. Reminiscências da “pátria” pela qual eu aceitara o chamamento ao combate. Por “ela” eu apanhei, eu me sangrei e me violentei na ilusão de que era exatamente aquilo que “ela” exigira de mim. Lembranças dos trigais dourados da lhanura dorsal que minhas mãos percorreram com sofreguidão dos amantes; das escaladas às suas montanhas de sutis contornos, relevos insinuantes, até atingir os rosáceos e culminantes picos. Deleitara-me naquele “ninho”,na sua nudeza. Balancei ante a visão de cada detalhe, dos rastros “nele” deixados pelas mãos em garra. Aspirei o inebriante perfume que somente aquelas paragens souberam ofertar. Descera pela encosta até a greta envolta por uma densa e alourada selva que me alucinou, corrompeu e me asfixiou— ah, louca morte! — não sem antes saciar todos meus desejos. Essa “pátria”, no entanto, impusera mais tarde leis que — a cada subversão ao que “ela” entendia como ordem natural — me entorpeciam, arrefeciam o ímpeto, a paixão, sequestravam-me os sonhos, reprimiam a inspiração, incineravam meus poemas e panfletos, torturavam-me a alma. E o seu fantástico exército repressor dispersava minhas nuvens e estrelas ouvintes, zombava dos meus discursos e eu, então inflamado, minguava, perdia a efervescência e vigor. Nesta lonjura o sentimento de perda era intermitente. Desgarrara-me dos trigais dourados, das planícies e montanhas que me conduziam à selva densa e arrebatadora que só aquele “recanto” possuía.

Desta janela entrevejo apenas o solitário vigilante — anjo-de-guarda noturno — cruzar pelas calçadas marchetadas pela bruma matutina. Escuto um pássaro madrugador; não é um sabiá. Percebo na dobra de uma esquina um menino louro; assim como surgiu, desaparece de repente a caminho do Rio Tejo. Hoje essas imagens não esboçam qualquer sinal, um olhar, nem mesmo palavras que ao menos me dissessem,— “Jamais trocaria nossa amizade por diferenças políticas e ideológicas”. — “Apressa-te que o bonde Gasômetro já vem…”. — “Lembras as serenatas que fazíamos no acampamento?”. — “Recordas a noite em que bebemos vinho, falando sobre as mulheres por quem nos apaixonamos? Foram mais de trinta!”. — “Sou aquela que retribuiu o teu sorriso”. — “Eu te estendi a mão na manhã primeira do ano”. — “Eu dançaria contigo a noite toda, outra vez…”.

—Lembro, meus eternos amigos, pois…

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