Colunistas

Doralina

Ela nos visitava a cada fim de mês, depois da ida ao centro da cidade receber sua pequena pensão. Pequeninha, caminhar arrastado, curvadinha pelos anos da vida, trunfa branca na cabeça e com a sua inseparável sombrinha, chegava pela metade da manhã e ia direto ao quarto de minha mãe para botar – como ela dizia – a conversa em dia.

Logo minha tia-avó trazia a ela uma bandeja com café, pão e manteiga, que eram saboreados com indisfarçável avidez. Depois, perto do almoço, ia para a cozinha terminar a conversa com as empregadas.

Negava-se a se sentar à mesa para almoçar com a família. Só depois que todos terminavam é que almoçava. E servia caprichosamente arrumado o prato abundante com arroz, feijão, carne e salada. Mas nós – eu e minha irmã – nesse dia não dispensávamos a sua companhia, e também pedíamos que servisse um prato igual, e dividíamos com ela o almoço e o assunto, ouvindo com atenção suas histórias.

Depois, sentava-se numa cadeira dizendo “vou fazer o quilo”, e cochilava balançando a cabeça. Não demorava, despertava, proseava mais um pouco, despedia-se soltando uma gargalhada larga, deixando à mostra apenas alguns dentes, e completava: “já é hora, tabacudos, vou embora”. E se ia com o mesmo passo miúdo para a sua casinha na Ilhota.

Assim era Doralina, descendente de escravos, que minha avó certa vez acolheu em sua casa e de nós nunca mais se separou. Quando minha avó morreu, seguiu com minha mãe enquanto a idade suportou. Ajudou a criar meus dois irmãos mais velhos. Nós a chamávamos de “madrinha”.

E era com ela, já aposentada, que meus pais contavam quando algo importante acontecia junto à família, uma viagem ou alguém adoecia, e lá vinha Doralina ajudar a cuidar da casa e das crianças. E dava ordens, impunha respeito, e nós obedecíamos com carinhosa reverência.
 
Era famoso o seu tempero; volta e meia, era chamada para fazer a sua receita de galinha ao molho pardo. Chegava com um dia de antecedência. Pedia que comprassem duas galinhas grandes e vivas. Com destreza e sem dó degolava as aves e, numa cumbuca com vinagre, derramava o sangue que jorrava. Em seguida, limpava as carcaças, cortava em pedaços e refogava-as em alho e cebola; quando douradas jogava o sangue na panela, deixando cozinhar por um longo tempo, mexendo sempre sem parar. Servia a iguaria com arroz branquinho e soltinho. Naquele dia a família se fartava; e Doralina confirmava sua fama de forno e fogão.

Fui eu quem atendeu o telefone naquela tarde de sábado; era seu filho comunicando que Doralina, repentinamente, acabara de morrer.

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