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Eles não tinham Netflix- Sergio Agra

ELES NÃO TINHAM
Eles não tinham Netflix- Sergio Agra

Eles não tinham Netflix- Sergio AgraInvariavelmente, dentre as frases primeiras que eu ouvia de Guio ao amanhecer uma delas era, Pretendes sair hoje?

No último ano de vida Pablo Neruda, o maior poeta chileno, autor de uma rica e extensa obra como Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, Canto Geral, Odes Elementares, Cem Sonetos de Amor, Confesso que Vivi, residiu em sua casa, na bela Isla Negra, na companhia de sua mulher Matilde Urrutia. Faleceu após a aplicação de injeção na Clínica Santa Maria, em Santiago de Chile, em 23 de setembro de 1973, onze dias após o golpe militar desferido pelo General Pinochet. Coincidência?

O escritor uruguaio HoracioQuiroga, que se tornou conhecido por seus contos fantásticos e macabros como Os Arrecifes de Coral, O Travesseiro de Penas, História de um Amor Obscuro, Contos da Selva, Contos de Amor, de Loucura e Morte,morreu na Argentina, onde passou parte de sua demasiadamente atribulada vida, marcada por tragédias: a morte do pai quando ele contava quatro anos de idade; o suicídio do padrasto; a morte do melhor amigo com um tiro que ele, Quiroga, de forma acidental havia disparado; os suicídios da esposa, AlfonsinaStorni, dos filhos Egle e Dario. Diagnosticado com câncer, Quiroga cometeu suicídio ingerindo uma dose letal de cianeto. Após sua morte seus outros três filhos igualmente cometeram suicídio.

José Saramago, um dos mais importantes escritores portugueses contemporâneos, autor deMemorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio Sobre a Cegueira e História do Cerco de Lisboa, dentre inúmeras premiações como o Prêmio Camões, conquistou em 1998 o Nobel de Literatura. Casado com Pilar delRío, faleceu na sua casa em Lanzarote, uma das sete Ilhas Canárias, na Espanha.

Nome que fez história no teatro, cinema e na TV, ator, diretor e produto, homem de teatro de larga atuação, apontado como artista de indiscutíveis méritos, criador de personagens de grande impacto, Walmor Chagas atuou, dentre outros, noTeatro Brasileiro de Comédia e no Teatro Cacilda Becker. Walmor nasceu em Porto Alegre em 1930. Ele decidiu viver os últimos 20 anos de sua vida no meio do mato, num lugar bem tranquilo, que lhe dava paz de espírito. Walmor costumava dizer para os amigos que tinha se mudado para lá porque queria tranquilidade e sossego. Queria ficar em paz. Queria ter tempo para estudar, ler, escutar música. No dia 18 de janeiro de 2013, foi encontrado na cozinha da casa do sítio morto com um tiro na cabeça. Suicídio.

João Gilberto, cantor, compositor e violonista brasileiro, considerado o criador da Bossa Nova, movimento da música popular brasileira que surgiu no fim dos anos 50, em que bastavam “um cantinho, um violão, esse amor, uma canção pra fazer feliz a quem se ama…”.  Seus maiores sucessos atravessaram seis décadas e são cantados até hoje: O Pato, Chega de Saudade, Desafinado, O Barquinho, Triste, Wave, Samba de Uma Nota Só, Meditação. Temperamental, perfeccionista, o que o levava às raias da neurastenia, negava-se iniciar a execução de uma canção se persistisse o menor rumor vindo da plateia. Exigiu por décadas que Tioãozinho, garçom do Restaurante Degrau, diariamente levasse o almoço em seu apartamento. João Gilberto faleceu no dia 6 de julho de 2019 no Rio de Janeiro, onde viveu seus últimos anos em um apartamento no Leblon.  Enquanto o corpo de João Gilberto era velado no Teatro Municipal os filhos de seus inúmeros casamentos estavam em pé de guerra, envidando as primeiras movimentações jurídicas em torno do espólio do artista.

À exceção da genialidade, e do suposto perfil de “genioso” que algum (ou todos eles) pudesse ter, em comum esses cinco expoentes da literatura e da música viveram seus últimos dias reclusos, distantes dos amigos, das luzes dos palcos, da sobriedade das centenárias livrarias, das mesas dos enfumaçados bares e cafés undergrounds por onde intensamente transitaram.

Quisera eu orbitar o mais próximo a esses e tantos outros homens e mulheres mestres cada qual em sua arte. Não obstante, o discernimento, a lucidez, a consciência de viver sem ilusões preceitua de forma categórica encontrar-me deles, de seus talentos e genialidade, anos-luz de distância.

Tornei-me um homem recluso, remoto, porém, da acepção que a palavra impõe: encarceradoaprisionadodetido. Da varanda de minha casa avisto o oriente que desponta além da linha do horizonte deste oceano que parece não ter fim.

O que fazer “lá fora”, na aldeia onde baratilhos se travestem em mal-ajambradas livrarias?;nesta paragem carente de mentes pensantes que se evadiram para torrões outros e de mais luzes?; ante o néscio apresentador que não suportou jamais a ideia de me servir de “escada” no programa de debates no rádio?; em poltronas vazias de um órfão e achavascado anfiteatro, mendigando bons espetáculos?; no gabinete do apedeuto burgomestre, detentor da “Bic escrita grossa” que esvazia a força e o colorido do culto ao livro, alterando a seu bel prazer data e local do evento antes consagrado no calendário cultural da Semana da Páscoa?; na esbórnia das confrarias aonde, no ápice da alegria etílica, maldizem a quem discorda do “pensamento” da claque coscuvilheira.

Sim, eu ouvia a Guio!

Hoje ela não mais me faz a pergunta, vez que, invariavelmente, minha réplica sempre é a mesma, Não, não pretendo e não desejo sair.

Minha “reclusão” é povoada quando da chegada de meu neto, de meu filho, de meu irmão; é habitada pelos cuidados da Guio e perfumada pelos temperos que ela, alquimista, faz com que evolem os aromas que um dia percebi na casa dos ancestrais. Minha “reclusão” é minha casa que é do tamanho ideal, de onde avisto o mar, aonde escrevo meus loucos e mal comportados poemas, recebo meus amigos, ouço meus discos, leio meus livros e nada mais…

Ah, sim! De quando em vez assisto a um bom filme no Netflix…

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