Colunistas

Em algum lugar do futuro…

Nunca duvides do poder dos “Lázaros”.
Quando estiveres com tuas defesas e celeiros escancarados,
cuidado!Eles se autoproclamam “comPeTentes”,  ressuscitam
  e decretam  indisponíveis a semeadura de tua existência inteira.”
“O Evangelho, Segundo BDD” (Brasileiro Definitivamente Desiludido)

Disposto a esquecer o papel de tolo que fizera, Chepito Molina abandona Havana antes do amanhecer.

Ele saíra, por vez primeira em seus trinta e oito anos, de São Borja levando na mala as esperanças e as economias da mãe. Sua novela fora selecionada para o especial Cuentos de Latino America, da Cubana Television. Na correspondência enviada pelo Núcleo de Minisséries, Chepito fora instruído para seguir a Havana, às despensas da emissora.

Do hotel, ele ligou para o diretor. Em resposta, disseram-lhe que o homem se encontrava em reunião, logo, logo iria ao seu encontro, que aguardasse.

“Esperar?”, Chepito desanimava-se, “É só o que tenho feito nesta puta vida!”.

O rapaz aguardou durante duas semanas o bendito telefonema e o reembolso das despesas que tivera. Desconfiado, o gerente do resort exigiu a desocupação e o pagamento das diárias.

Mochilas às costas, Chepito de Molina, desiludido e com os últimos cents nos bolsos, segue pela Avenida Jose Marti. Na Praça da Revolução, àquela hora vazia, senta no meio-fio da calçada, perguntando-se como faria para chegar ao aeroporto.  Um gari aproxima-se.
“Perdido?”, o varredor pergunta.

“E mal pago!”, responde Chepito. Examina o homem à sua frente. “Assim como você!”. Avalia o recém-chegado uma vez mais: a barba e os cabelos já apresentando os brancos, em total desalinho, o desconhecido vestia, curiosamente, não o uniforme da companhia de limpeza urbana, mas um macacão que mais lembrava o de um mecânico. “País de merda este teu!”. O outro, fingindo indignação, cerra o punho levando-o ao peito e discursa: “Sou tão brasileiro, como você!”.

“Agora não me falta mais nada:”, rebate Chepito: “um limpador de ruas tupiniquim!”.
“O que é isso, companheiro?”, o gari não deixa por menos. “Baixaria a esta hora da madrugada? Quer saber? Varredor aqui vive bem pra cacete, companheiro!”.

Os traços do homem não são de todo estranhos a Chepito de Molina.

O gari, acomodando a vassoura no carrinho, fita o céu ainda marchetado de estrelas e filosofa: “De um certo modo, companheiro, a razão de estarmos em Havana é a mesma: fazer com que nossas verdades sejam reconhecidas”. Empurra o carrinho e faz o convite para cearem.
“Onde?”, indaga o rapaz.

”No Mãe Menininha, responde-lhe o gari.

Serginho Mau-Mau – fina-flor da bandidagem, saíra, fugido, sob a suspeita de mandante do crime de um prefeito do interior paulista – mantém um reservado, só para os mais chegados, nos fundos do Restaurante Mãe Menininha. Escuta-se ali o tanger do solitário berimbau e o frigir do azeite de dendê no refratário. Pendurada numa das paredes, vê-se uma moldura com um dístico onde se lê: “O cabaré é o lar dos boêmios”. Uma cabocla, saída das telas de Di Cavalcanti, traz os cálices e o vinho: Châteauneuf du Pape, de nobre safra. O varredor encomenda Lagostas a la Tour Eiffel.

“Lagostas?”, Chepito está surpreso.

O gari mostra-se arrogante:

“Importadas!…”, irônico, “… do Ceará!”. Apruma o colarinho da camisa sob o macacão como se houvesse uma gravata. “Companheiro, a madrugada é pródiga para o deleite dos bons champanhes e dos soberbos charutos!”, melancólico, “e para o desabafo das nossas histórias”. Mais animado avalia a cabocla: “Que bunda, companheiro, que bunda!”.

O homem fala de si. Vivera em São Paulo desde a adolescência. Passou fome, liderou piquetes grevistas, apesar de nunca ter lido um livro sequer. Durante a ditadura, arapongas atribuíram a ele e ao bando a autoria de assalto a bancos, seqüestros de políticos e embaixadores.
“Mentiras! Infâmias! Invejosos que eles eram! Anarquia, sim, a céu aberto!”.

Com a Abertura e a volta da democracia, intrometeu-se em Brasília.

Chepito mantém suspenso o cálice vazio. Abismado com a narrativa do novo companheiro, supõe:

“Brasília… Esta tu conheces bem”.

“Do luxo ao lixo!”.

“Até os senadores, os ministros, os empresários?…”, Chepito quer saber.

“Grandessíssimos filhos-da-mãe!”, troveja o gari. “Farinhas do mesmo saco!”. Lembra nomes e fatos: não o souberam entender, os sacanas. “Na hora “agá”, me apunhalaram pelas costas”.

“E, depois?”, Chepito mostra ser um bom ouvinte.

“Resolvi dar um tempo: ir embora e ser varredor de ruas”.

“Mas aqui, em Havana?, Chepito ironiza.

“Aqui, no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte, Santo André… Tinha que escolher. Lá, quanto mais varresse, mais imundo estariam os becos de cada cidade. Não de lixo, mas de falcatruas, rombos nas instituições públicas. “Queima de arquivos” e cadáveres desovados. Com desprezo: “Nordestinos, paulistas ou cariocas não são mais bandidos do que os outros brasileiros. Aqui o “lixo” é outro! No Brasil eu dava uma de faxineira porca: enquanto “eles” se ocupassem em se autopromover com CPIs, fraudar a previdência, os bancos, as estatais, comprar votos de deputados, promover propinas e mesadas, acobertar chacinas nos subúrbios, “lavar” os vestígios do crime e trocar a posição do morto, eu jogaria o “lixo” nas águas de Guarujá, Copacabana ou Boa Viagem, Macaraípe, Ponta de Serrambi, Porto de Galinhas e nunca encerraria a paga. Aqui, ao menos, sei a hora e o dia certos da volta triunfal!. Vou ficar na história pelas minhas obras! A mídia e as home pages o dirão! E você, o que faz?”.

Chepito conta-lhe que era escritor e porque foi dar com os costados em Havana. Sim, ele escrevia muito, e a novela que remetera para a emissora de televisão narrava a história de Úrsula. Ela vivia com o pai, o sargento José Aureliano, num ranchito próximo ao povoado de Santo Tomé, na fronteira da Argentina, às margens do rio Uruguai. Certa madrugada de tempestade, a menina Úrsula acordou-se com o ruído da chalana atracando entre os maicás, nos fundos da propriedade. A cuscarada ameaçou o alarido. Aureliano, com um sussurrante “se quiedán quietos, perros”, arrefeceu os guaipecas. Os recém-chegados, quatro ou cinco, entraram na choupana.

O líder, de uma beleza rude, os cabelos longos e a espessa barba, usava uma boina de pelúcia negra, ornada por uma pequena estrela de metal. O tom enérgico de sua voz, não lhe desmentia o comando: “Estoy contándo con usted, compañero Aureliano. Convoca os chiberos, partiremos com a aurora”. “Sim, Comandante!”, respondera Aureliano. Então, o pai retirou-se com os homens e Úrsula se viu a sós com o desconhecido. Não sentiu medo das trovoadas e dos relâmpagos que rompiam o negror da noite.  Num átimo, os braços firmes que a envolviam transportaram-na da infância de menina criada sem mãe à realidade de uma nova mulher. O alvorecer levou-lhe o pai e aquele nômade pelos caminhos do chaco, rumo à Bolívia. A partir dali, os dias de Úrsula e do filho que carregaria no ventre, seriam de um eterno esperar. Deu ao menino o nome daquele guerrilheiro duro e, ao mesmo tempo, terno.

O sol já vai alto e o gari acompanha Chepito de Molina ao aeroporto.

“Para onde vai, companheiro?”, este é o varredor.

“Volto para São Borja. Algum dia, quem sabe, eles me chamem outra vez”.

A voz anônima nos alto-falantes noticia a última chamada para o vôo com destino ao Rio de Janeiro. Os passageiros, em algaravias, buscam a sanfona de acesso à aeronave. Os novos amigos abraçam-se. O gari, por vez primeira, parece esboçar um gesto de ternura:
“Adeus, Ernesto”.

Atônito, Chepito, tomado de roldão pela massa de passageiros que embarcavam grita:

“E o teu nome? Nem sei como te chamas…”.

O homem alça a mão esquerda aberta, onde lhe falta o dedo mínimo, e num aceno de adeus, apenas sorri… matreiro…

O ronco das turbinas de um avião que decolava e o alarido dos viajores impedem Ernesto Guevara de Molina de entender algo mais.

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