Episódio VII de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra
NO CAMINHO DE TAQUARI
Episódio VII de As Crônicas de Aleph
“…certas personagens de romance tomam para nós um relevo
que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos
e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida real.”
Fernando Pessoa
Chovia muito na véspera da Sexta-feira Santa. O anos era 1955. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam a São Jerônimo, Triunfo e General Câmara, de tão quietas e desertas, a aparência de cemitérios abandonados. O barco a vapor de Mestre Dário, o Porto Alegre, enfrentava com valentia a força das águas do Jacuí. Há muito escurecera quando a embarcação, finalmente, enveredou para o Rio Taquari, por onde alcançaria o embarcadouro da cidade a que emprestara o nome. No porto, apesar do dilúvio, meu avô paterno lá se encontrava, abrigando-se do torrencial aguaceiro sentado ao volante do seu automóvel — um flamante e explendidamente conservado Ford Prefect preto, ano 1952 — estrategicamente estacionado o mais próximo possível do cais, à nossa espera.
Após o tormentoso desembarque, envolvido pelo hospitaleiro abraço do avô e indagado de como fora a viagem, jurei que jamais faria outra jornada a bordo de balouçantes embarcações, não nas condições de tempo como o daquela noite. A mãe, sempre prestimosa aos meus caprichos, aquiescera e, para me sossegar, comprometeu-se que dali para diante as excursões àquele pequeno e bucólico lugarejo se fariam no automóvel de meu pai.
Esta decisão, no entanto, limitou-se a uma única e desgastante experiência, na antevéspera do Natal daquele mesmo ano. A rodovia — então extremamente precária — era na maior parte de seu percurso de chão batido. A poeira erguida pelos veículos que trafegavam no sentido contrário cegava totalmente a visão de meu pai, sem considerar as pedras que eram lançadas com violência pelos pneus dos pesados caminhões e que deixavam suas marcas na lateral do carro. Em dias de chuva a rodovia se transformava em verdadeiro atoleiro e não guardava, sob qualquer tempo, o fascínio das viagens nos antigos vapores impulsionados por caixas de roda.
Ao se partir de Porto Alegre a bordo de um desses navios, antes de alcançar o delta do Jacuí, vislumbrava-se das vigias dos camarotes as Ilhas da Pintada, da Pólvora e das Flores para, aí sim, se iniciar a subida do leito sinuoso dos rios Jacuí e Taquari, margeados por densas matas nativas que presenteavam com deslumbrantes cenários a cada meandro. Em dias de intensa claridade, a uma distância de quatro quilômetros do porto do destino, quando o vapor iniciava uma longa e suave curva para a esquerda, apoiados nas balaustradas avistávamos por entre a copa das árvores do bosque que ainda circunda a pequena povoação primeiro, o campanário da Igreja Matriz São José de Taquari, na elevação da Rua Sete de Setembro; aos poucos, os altos muros do Seminário Seráfico São Francisco de Assis e os telhados já sem cor definida dos antigos sobrados no estilo colonial português; mais próximo do cais, já distinguíamos, tal inabalável sentinela, a possante águia esculpida em granito na cumeeira do solar avoengo. A ave parecia preconizar a chegada dos hóspedes.
O exterior do casarão exibia-se para o leito de três diferentes artérias: na Rua Albertino Saraiva se posicionava a fachada principal: o portal, ladeado por duplas de janelões; na Rua Sete de Setembro, posicionavam-se, arejados por largas janelas três dormitórios; e na fachada oposta a esta, que findava para o pátio onde imperava um magnífico orquidário, a garagem e o acesso secundário que se fazia através de um pequeno portão para a Rua Osvaldo Aranha.
Neste solar, recém-chegados, éramos recebidos por verdadeiro festival de aromas e sabores indescritíveis que se perpetuariam na minha memória: a essência do óleo de peroba nos móveis antigos, o perfume dos jogos de cama lavados e caprichosamente engomados, os eflúvios da goiabada e do doce de abóbora que minha avó recém os havia feitos em tachos de cobre que se evolavam por todos os recintos da grande casa. O avô, por sua vez, não cabia em si de contentamento com a visita do primeiro neto. Ante a promessa do velho para o dia seguinte irmos ao orquidário, onde o orgulhoso anfitrião exibiria os novos espécimes de sua coleção e as medalhas de ouro e de prata, lauréis das mostras e competições daquelas exóticas flores, recolhíamo-nos para o reparador repouso.
Na companhia de meu avô paterno eu fruía nas horas preguiçosas que antecediam o entardecer do suave e inusitado prazer em aspirar a adocicada fragrância da fumaça do crioulo e ver o fumo caprichosamente desbastado e enrolado com habilidade na folha de palha. Vovô provocava-me gargalhadas ao, com fina ironia — traço marcante do ancestral —, desfiar-me “causos” com as gafes e trapalhices de alguns confrades da aldeia. Meus olhos arregalaram-se tamanho o espanto ante a narração do duelo de dois valentes e destemidos que se entreveraram, ao pé do centenário e gigantesco umbu, silenciosa testemunha das faíscas das adagas que alumiavam as sombras primeiras do crepúsculo até que um deles, ferido, tingisse com seu próprio sangue a relva. Tudo isso pelo sortilégio de ao vencedor o direito à corte e aos encantos de uma jovem, das filhas, a mais bonita, do “coronel” João P., proprietário de campos e terras que se estendiam para os lados de General Câmara e Triunfo. Eu não mais suportava o suspense e a curiosidade, — “Quem era essa moça?”. Os olhos do velho traziam um brilho de nostálgico orgulho, — “Tua avó!”. Antes que lágrimas lhe turvassem as vistas o avô, ante minha ingênua inconveniência, inventava anedotas outras contando as sandices de antigo prefeito da cidade. Eu tinha assomos de risos, — “E o que foi que o prefeito fez?”. Então o avô descrevia a fúria com que o alcaide se voltara contra o Secretário de Obras por ter este autorizado o carregamento de cento e dois sacos de cimento para o galpão localizado nos fundos do pátio do paço municipal. O Secretário defendia-se dizendo que a autorização, por escrito, partira dele mesmo, o prefeito. Mais irado ainda, a apedeuta autoridade exigiu que lhe fosse mostrada semelhante ordem. Num relance, o subalterno encaminhou-se até sua escrivaninha e trouxe a folha de um memorando onde, a muito custo, se liam as garatujas: — “Manda buscá 1 0 2 sacus de simentu. É pra oji”.
Nos feriados prolongados como aquele, a casa, após o almoço, era invadida pelo alarido dos meus primos, a despeito dos clementes pedidos da avó para que guardássemos silêncio, afinal a sesta era sagrada para o velho orquidófilo e exímio inventor de histórias.
Era então permitida a incursão do alegre bando à Lagoa Armênia. Para alívio da matriarca o descanso do esposo estava salvo.