Éramos todos visionários – Sergio Agra

Sergio Agra

ÉRAMOS TODOS VISIONÁRIOS

(Narrativa de Aleph)

Capítulo XII da Série As Crônicas de Aleph

…na quietude de meu quarto, na abafadiça e escura noite de incertezas que a mordaça recém-imposta a todos que ousassem expressar seu pensamento libertário ao Regime de Exceção, escutei ao longe o clangor das rodas sobre os carris do único e solitário bonde que viajava nas madrugadas. O que me atemorizava, no entanto, era o estrépito do motor dos caminhões de transporte de soldados e o dos rolamentos de ferro sobre as esteiras dos blindados de guerra que varavam até mesmo os becos e os mais sórdidos prostíbulos como lembrete de que os tentáculos da Ditadura a tudo estavam atentos. Àquela hora tardia ninguém de bom senso se atrevia a deambular pelas desertas ruas da cidade.

Da minha janela eu vislumbrava os altos muros do Mosteiro das Carmelitas e a rua em que eu morava desde a infância. Apesar da hora sossegada a sua quietude não desaparecera. Minto! Havia ali, sim, uma leve ameaça. Este bulício era provocado por um alegre e despreocupado bando de adolescentes que nela residia e transformava as calçadas do primeiro quarteirão, para desespero dos comerciantes, suas vitrinas e os luminosos letreiros de neon, em canchas de futebol, pistas de patinação, ciclovia e — pasme! — ringue de luta-livre.

À rua somente era concedido o direito ao silêncio às horas tardias da noite e da madrugada. No dia seguinte, tudo começava outra vez.

Nossa feliz e irresponsável adolescência já se mostrava com os seus dias contados. Logo, logo, a descoberta das paixões, do primeiro amor, das escolhas profissionais, da opção política de cada um se fariam presentes. Um novo espírito habitaria corações e mentes: o espírito da conquista do seu espaço, de um lugar no futuro, como autênticos astronautas dispostos a viajar aos confins do universo. Cada qual iria seguir o seu rumo, haveria de escrever a sua história, una e pessoal, recheada da indelével lembrança do que até então havíamos compartilhado.

Como permanece o semblante de cada um de meus antigos amigos? Suas fisionomias se alteraram de forma tão significativa que não mais os reconheça? Fiquei tão desatento a ponto de não mais distinguir o sorriso de cada um? Minha voz se perdeu nos ecos de um túnel sem fim? E meus olhos? Meus olhos…

Foi por vocês, meus Amigos, que me distanciei da realidade que ora me cerca. Vejo, à minha maneira, cada rosto e ergo um brinde àqueles momentos já distantes.

Não pretendo ficar eternamente à janela deste quarto de hotel em Lisboa imaginando pedaços que foram meus, palavras que um dia proferi e sonhos que acalentei voarem, libertos, rumo àquela “terra” da qual me expatriei. Há de me ser permitido no derradeiro alento deitar-me e sentir o calor das relvas e das flores da minha “pátria”, mesmo que, na verdade, tudo não passe de um tresloucado delírio.

No horizonte a estrela vermelha explode no amanhecer de uma nova era…

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