Escavações revelam segredos escondidos há 700 anos sob o solo do RS

Escavações revelam aspectos surpreendentes em território sul-brasileiro, sobre os hábitos alimentares e as práticas sociais dos Guarani pré-coloniais. A pesquisa, conduzida pela arqueobotânica Fernanda Schneider (Univates) e publicada como capítulo…
Escavações revelam segredos escondidos há 700 anos sob o solo do RS
Foto: Escavações revelam segredos escondidos há 700 anos sob o solo do RS

Escavações revelam aspectos surpreendentes em território sul-brasileiro, sobre os hábitos alimentares e as práticas sociais dos Guarani pré-coloniais.

A pesquisa, conduzida pela arqueobotânica Fernanda Schneider (Univates) e publicada como capítulo no livro “20 anos de Arqueobotânica no Brasil: uma disciplina em ascensão”, mergulha na relação entre esse povo originário e a flora que os cercava entre os séculos XIV e XIX, com base na análise de 472 vestígios botânicos carbonizados encontrados no sítio arqueológico RS-T-114, localizado às margens do Rio Forqueta, em Marques de Souza (RS).

O estudo contou com a colaboração dos pesquisadores Rafael Corteletti (UFPel), Elisete Maria de Freitas (Univates), Daniel Marcelo Loponte (Conicet/Argentina) e Neli Teresinha Galarce Machado (Univates).

Os vestígios, obtidos por escavações minuciosas, proporcionaram um vislumbre detalhado do cotidiano guarani, revelando não apenas o que era cultivado e consumido, mas também como o cultivo refletia rituais, festividades e dinâmicas sociais.

Milho como base da dieta e do simbolismo Guarani

Entre os 13 tipos vegetais identificados, o milho (Zea mays) se destacou de forma contundente, representando cerca de 75% de todos os restos encontrados.

Isso sugere que o cereal não apenas era a principal fonte alimentar, mas também possuía profundo valor simbólico.

Foram reconhecidas três variedades diferentes de milho, indicando que os Guarani dominavam técnicas avançadas de cultivo, seleção de sementes e preservação.

Outras plantas cultivadas ou possivelmente cultivadas incluíam duas variedades de feijão (Phaseolus vulgaris e Phaseolus lunatus), além de espécies identificadas como feijões silvestres, mandioca (Manihot sp.) e membros da família Cucurbitaceae, como possíveis melões nativos.

Esses cultivos revelam uma agricultura diversificada e adaptada às condições ecológicas da região do Vale do Taquari.

Práticas sociais e rituais nas aldeias Guarani

A escavação do RS-T-114 foi dividida em duas áreas principais: a Área 1, que servia como um espaço de descarte (lixeira da aldeia), e a Área 2, voltada para atividades sociais e rituais.

Essa segunda área revelou artefatos cerâmicos ornamentados, como tigelas kambuchi kaguava, usadas para servir bebidas fermentadas, além de 21 tembetás (adornos labiais) feitos de quartzo hialino, comumente utilizados em rituais de passagem.

Esses elementos materiais estão diretamente ligados a celebrações tradicionais, como a festa anual do milho (avatikyry avati hemongarai) e o kunumi pepy, que marcava a transição de meninos para a vida adulta.

Nessas ocasiões, o milho era fermentado em bebidas consumidas coletivamente e simbolizava prosperidade, fertilidade e identidade cultural.

Expansão Guarani e manejo florestal

Os Guarani têm suas origens na Amazônia e expandiram-se por diversos biomas sul-americanos, como a Mata Atlântica, o Cerrado e o Pampa.

Durante esse processo, levaram consigo sementes domesticadas e conhecimentos botânicos que permitiram o cultivo de espécies como o milho e a mandioca em novas áreas.

Essa migração agrícola, feita de aldeia em aldeia, demonstra a sofisticação do manejo ambiental e a preservação da biodiversidade nativa.

Além das plantas cultivadas, os vestígios revelam o uso de plantas silvestres da Mata Atlântica com diferentes finalidades: a paineira (Ceiba speciosa) era fonte de fibras e alimento, a timbaúva (Enterolobium contortisiliquum) era utilizada na pesca por seu efeito ictiotóxico e na medicina tradicional, e a palmeira jerivá (Syagrus romanzoffiana) tinha funções econômicas e cosmológicas, figurando inclusive em mitos de origem.

Escavações revelam descobertas e interpretações sob perspectivas científicas

Apesar da baixa diversidade taxonômica entre os vestígios em comparação com fontes etnográficas, os pesquisadores argumentam que os dados refletem atividades cerimoniais específicas, e não a totalidade do cotidiano.

A expectativa é que estudos futuros, com análises de fitólitos e grãos de amido, revelem um uso mais amplo de raízes e tubérculos, hoje pouco representados na amostra analisada.

A pesquisa reafirma a importância da arqueobotânica como ferramenta para reconstruir a história indígena pré-colonial e contribui para a valorização do conhecimento ancestral Guarani.

Esses povos desenvolveram sistemas agrícolas sofisticados e sustentáveis, demonstrando uma profunda conexão com o território, que combinava cultivo de plantas com o uso consciente dos recursos florestais.

Glossário

Arqueobotânica – Ramo da arqueologia que estuda restos de plantas e algas em sítios arqueológicos para entender relações humanas com a flora.

Cariopse – Tipo de fruto em que a semente está completamente soldada ao pericarpo.

Cotilédone – Folha embrionária que surge na germinação de sementes.

Carpologia – Ciência que estuda sementes e frutos, com fins arqueológicos ou botânicos.

Ictiotóxico – Substância tóxica para peixes, usada em pesca tradicional.

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Pericarpo – Parte do fruto que envolve a semente, incluindo epicarpo, mesocarpo e endocarpo.

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