Igreja Cristã – de Cristo ou dos homens?
Nosso mundo está alicerçado sobre alguns dogmas intocáveis, e incompreensíveis, para a grande maioria das pessoas. Um deles é o cristianismo. O outro, o capitalismo, uma instituição consolidada a partir de bases “cristãs”.
QUEM PESQUISA SOBRE O CRISTIANISMO?
Pessoas acostumadas a ver a igreja, seja ela qual for, em sua forma exterior e moderna, acreditam que Cristo, como ser histórico – e não real, ter sido o “fundador” da Igreja Católica, e depois, por consequência, das demais igrejas surgidas da Reforma Protestante no século XVI.
Por termo “histórico” entendemos o Jesus que pode ser analisado segundo métodos ou conceitos históricos modernos. O Jesus “real” está fora do alcance humano quanto ao que entendemos por ciência, sendo inatingível ao historiador pela falta de documentação sobre o assunto.
Essa separação entre o Jesus “histórico” e o “real” foram termos criados por John P. Maier, um historiador e padre católico da Universidade Católica da América, em Washington. Maier é um dos mais conceituados pesquisadores quando o assunto é a origem do cristianismo. Seus dois volumes de Um Judeu Marginal – repensando o Jesus Histórico, publicados pela Imago em 1993, foram, de certa reforma, revolucionários.
Maier cunhou os conceitos histórico e real como método para separar o que era possível descobrir/saber sobre o Jesus histórico, um judeu marginal da Palestina no I século e criador de uma nova “filosofia”, e o Jesus real, homem natural com relações pessoais, sentimentos e ações. Para ele o resultado de suas pesquisas sobre Jesus é resultado de “um conclave sem Papa”, onde pesquisadores protestantes, católicos, judeus ou agnósticos teriam chegado a um comum acordo sobre Jesus. Quanto ao “marginal”, Maier está se referindo há um judeu que viveu à margem da sociedade, não se refere a marginalidade no sentido que damos hoje a palavra.
Ao contrário do que a maioria pode pensar, não há provas da existência de Jesus Cristo fora da Bíblia. Maier acredita que os textos comumente indicados como provas sobre a existência de Cristo foram forjadas por cristãos séculos após os acontecimentos “históricos” narrados na Bíblia. Entre eles os livros do historiador judeu Flávio Josefo A Guerra dos Judeus e Antiguidades Judaicas. Ambos, com originais escritos mais de 35 anos após a morte do Nazareno, teriam “inserções cristãs posteriores”.
Outro padre, um irlandês de nascimento, que tem revolucionado as pesquisas sobre o cristianismo é John Dominic Crossan. Autor, entre outros, de O Jesus histórico, Jesus: Uma Biografia Revolucionária e Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Crossan é polêmico. Fundador, em 1984, do Jesus Seminar, deixou a Igreja Católica por desentendimentos com a hierarquia da Igreja e por querer acabar com o celibato. Como Luther deixou a Igreja e casou.
Também digno de menção é Burton L. Mack, professor de Novo Testamento da Faculdade de Teologia de Claremont, e autor, entre outros, de O Evangelho Perdido – O Livro de Q e as origens cristãs. Mack apresenta novos dados sobre pesquisas que vem sendo feitas desde o final do século XVII sobre Jesus Cristo e as origens do cristianismo.
Marck narra a história do “Evangelho Perdido”, o evangelho que serviu de base para os demais evangelhos e que os pesquisadores chamam de “Q”, do alemão Quelle (fonte). Desde meados do século XIX pesquisadores alemães protestantes como Karl Lachmann, Christian Hermann Weisse, Karl Ludwig Schmidt, H.J. Holzmann e o russo Adolf von Harnac vinham trabalhando no assunto. Weisse foi o primeiro a teorizar sobre um evangelho que teria servido de base para os demais. Hoje o assunto é amplamente difundido e sabe-se muito bem o que há de “inserção cristã posterior” no Novo Testamento, ou seja o que os cristãos acrescentaram aos ditos de Jesus.
Portanto, sejam protestantes ou católicos, para os historiadores, perdoem-me pela redundância, certos dogmas há décadas são fábulas do passado.
O CRISTIANISMO PRIMITIVO
Os dogmas fundamentados pela Igreja Católica, e alguns da mesma forma seguidos pelas demais denominações cristãs, inclusive entre os luteranos, calvinistas, e os atuais evangélicos pentecostais, são baseados em textos dos cristãos primitivos adulterados. Nessa época, os seguidos de Cristo sequer se denominavam “cristãos”, eram nada mais do que uma das muitas seitas divergentes do judaísmo. É o que pesquisadores, de Weisse, no século XIX, à Mack no século XXI, vêm tentando esclarecer e informar.
A própria formação do cânon (os textos bíblicos) só ocorreu em sua forma definitiva, como vemos hoje, no Concílio de Trento em 1546. Antes disso, por mais de mil e quinhentos anos, ocorreram concílio e acalorados debates sobre qual texto devia ou não ser inserido na Bíblia Cristã.
Crucial para a consolidação da doutrina católica sobre o restante dos grupos cristãos primitivos foram os 4 primeiros concílios, ocorridos entre 325 e 381. O primeiro deles, em Nicéia (325), foi marcado pelo debate/combate entre católicos e arianos. Os seguidores do Bispo Ário rejeitavam o conceito da trindade, ou melhor, da dualidade, já que o debate era sobre serem Cristo e Deus a mesma coisa (consubstanciais). Só em concílios posteriores o debate sobre o Espírito Santo veio à tona e foi incluído no que se denominou a “Santíssima Trindade”. Fácil ver que, criada sob debates teológicos e com interesses políticos – o cristianismo fora aceito como religião oficial do Império Romano nessa mesma época – o dogma primordial do “cristianismo” é uma “criação humana”.
Outro dos Concílios que marcaram profundamente a vida “cristã” foi o de Éfeso, em 431. Apenas nesse concílio, 400 anos depois de morte de Cristo, Maria foi declarada “theotókos”, ou seja “Mãe de Deus”. Os cristãos primitivos, que tiveram contato com o próprio Cristo, nunca se referiam a Maria como tal “título”. No entanto, os Bispos que pregavam o contrário, como Nestório de Antioquia, foram considerados hereges, destituídos e perseguidos. A partir desse momento o catolicismo (referente aos seguidores do Bispo de Roma), como religião oficial do Império, passa a ditar as normas do “cristianismo”.
ELIMINAR OPOSITORES ERA A ORDEM
Os historiadores, muitos católicos, provaram que o cristianismo apostólico “selecionou” aquilo que bem lhe servia para compor o cânon. Destruindo ramos rivais, principalmente os chamados esotéricos e também os essênios. Nesse contexto é necessário a leitura dos pergaminhos descobertos em 1947 em Qumran no Mar Morto, ou os ainda nem tão conhecidos do grande público, manuscritos de Nag-Hamadi, no Egito. Todos servem como prova de que houve grupos divergentes do apostólico e que foram dizimados quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano e depois quando Estado e Igreja se uniram, de forma muito simbólica, no Natal de 800, com a coroação de Carlos Magno.
ALIENAÇÃO
Mas onde chegamos com todas essas discussões sobre a origem do cristianismo e o Jesus Cristo histórico?
A formação da hierarquia na Igreja e a formação dos dogmas foram fundamentais para a consolidação de seu poder. Não esqueçamos que a Igreja substituiu o decadente Império Romano do Ocidente como um “Estado” dentro do Estado. A religião cristã foi um diferencial entre as demais religiões da época.
Se no início para ser cristão bastava acreditar no Cristo e receber o batismo, como o tempo a Igreja monopolizou o contato com a Divindade. Não havia chance ao homem comum chegar até Cristo sem a intervenção do clérigo e da Igreja. Ela, a Igreja, estava criando a dependência, e a dependência é o primeiro passo para a dominação do povo e a consequente alienação do mesmo.
A Reforma Protestante desencadeada por Martim Luther em 1517 eliminou antigos dogmas e quebrou a hierarquia da igreja, mas mesmo assim manteve rituais e simbologias desconectadas do cristianismo primitivo – vejam, por exemplo, os símbolos da Páscoa na minha coluna de abril. Além do que, conforme os grandes pensadores como Max Weber, a Reforma abriu possibilidades para a expansão, consolidação e ampliação do capitalismo.
Vejam que passei a explicar durante toda uma coluna, versões humanas sobre a religião. Religião criada pelos homens, com seus defeitos, dogmas e muros. Dogmas e muros que precisam ser derrubados para o real desenvolvimento das sociedades humanas. No que consiste acreditarmos na “Virgindade Mariana”, na “Imolação do Cordeiro Pascal”, no celibato de Cristo ? A verdadeira fé cristã não deveria estar no que Jesus pregou?
Em artigo para a Revista História Viva, Frei Jacir Freitas Faria escrevendo sobre os Evangelhos Apócrifos e sobre a possível “ligação carnal” entre Jesus e Maria Madalena perguntou: “qual seria o problema?”. Essa pergunta, e sua resposta, são interessantes porque ainda vemos setores da Igreja, e das igrejas, se utilizando da ignorância de pessoas simples para pregar o pagamento do dízimo, a construção de igrejas suntuosas, a manutenção de hierarquias desnecessárias (quando não perigosas como a manutenção de padres ou bispos pedófilos). Por outro lado, há aqueles que mesmo pertencendo a instituições tão ortodoxas estão atualizados.
Aliás, Maria Madalena nunca foi prostituta como propaga a Igreja. Segundo Katherine Ludwig Jansen, professora de História da Universidade Católica da América e autora de The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages (inédito no Brasil), a confusão é culpa do Papa Gregório, o Grande, que no século VI interpretou erroneamente uma passagem bíblica, fundindo numa mesma pessoa Maria de Betânia, Maria Madalena e uma pecadora prostituta citada por Lucas. Como pelas leis da Igreja o Santo Padre é infalível, ou seja o “representante de Deus na Terra” não erra, Maria caiu em desgraça. Não erra ?
ANTI-CATÓLICO ?
Os mais atentos devem ter observado que me utilizei de material publicado por pesquisadores e historiadores católicos, em sua maioria, para escrever esse artigo. Não foi sem propósito, foi para provar que não sou anti-católico, e para mostrar aos próprios católicos – e também as demais denominações religiosas cristãs – que existe a necessidade de rever antigos dogmas, dogmas que já não fazem mais sentido algum serem repassados porque perderam sua função histórica. Basta lembrar ainda que a Igreja pregou durante séculos a criação da humanidade através do mito “Adão e Eva” e de uma concepção geocêntrica do universo, quando hoje sabemos que isso serviu apenas para uma geração sem os conhecimentos ou instrumento necessários para tal compreensão.
Cabe reproduzir aqui a frase brilhante de um cientista brilhante, Denizard Hippolyte Leon Rivail: “Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente à razão, em todas as épocas da Humanidade”.