Inventário de mim – Sergio Agra
INVENTÁRIO DE MIM
Invejo — mas não sei se invejo — aqueles de quem se pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a própria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.
Completei no dia 18 de setembro dezoito meses de clausura, de compulsório distanciamento social, carente dos beijos, dos abraços, do calor da presença e das palavras dos meus afetos que de mim não estão próximos. O vírus pandêmico transformou o que chamávamos de vida normal em outra realidade, a nova normalidade.
Neste espaço de tempo todos fomos forçados a ser criativos, sobretudo aqueles que sofreram a perda do emprego, a demissão de seu trabalho ou viram as portas de seus pequenos negócios cerrarem suas portas ante a evaporação do poder de compra, o crash das Bolsas de Valores e da economia mundiais, precipuamente nos países em desenvolvimentos e nas nações mais pobres.
Em nenhum tempo e circunstância busquei com tamanha intensidade na literatura o refúgio do fantasma das incertezas e dos temores criados pelas fakenews das redes sociais, pela imprensa factoide e sensacionalista que busca audiências e vendagem através da divulgação flagrantemente exagerada e parcial de fatos e acontecimentos.
Que há de alguém confessar que valha ou que sirva o afastamento, a reclusão, os cuidados? O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações. Minha tia-avó “Bibica”, velha e solteirona, jogava paciências durante o infinito das noites de verão no antigo Chalé Grande, em Arroio Teixeira. Estas confissões de sentir são paciências minhas. Não as interpreto como quem usasse cartas para saber o destino. Não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas. Cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. Depois viro a mão e a imagem fica diferente.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochê das coisas. De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo. Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter. Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo. Sim, crochê.
Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que deveria humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço. A glória noturna de ser grande não sendo nada! A majestade sombria de esplendor desconhecido. E sinto, de repente, o sublime do monge no ermo, do eremita no retiro, inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas do afastamento.
E na mesa do meu computador sou menos reles, empregado e anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma, joia parada do meu desdém extático.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser ameigado pelos amigos da adolescência, agora distantes e mudos, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo como uma rua da Cidade Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como aposentado de uma autarquia estadual há muito extinta. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se na Avenida Ubirajara. Ouço-me aplaudido por multidões? O aplauso chega ao oitavo andar onde moro e colide com a mobília da minha biblioteca, com o que me rodeia, e me amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive sequer reles castelos em Búzios ou Puntadel Este, como os atores globais e os socialites de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem caíram, foi preciso destruí-los com um gesto de mão sob o impulso impaciente da diarista que queria recompor sobre a mesa inteira a toalha atirada sobre a metade de lá, porque a hora do café soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é uma visão improfícua, pois não tenho a casa de campo, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de porre, um chá que me saiba a repouso e amenize a ressaca. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o briques dos arredores, apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.