Ira – Por Sergio Agra
VII Capítulo da Série “O Confiteor de Aleph”
Assim que o avião de Jango decolou de Brasília para Porto Alegre, e daí para Montevidéu, o senador Moura Andrade reuniu o Congresso e comunicou que o Presidente da República se ausentara da Capital com provável destino ao exterior. E, aos berros, gritou para o plenário, atônito e perplexo, “Declaro vago o cargo de Presidente da República e, na qualidade de presidente do Congresso, dou posse ao sucessor constitucional, o presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzili, e levanto a sessão”. A sessão foi levantada e os parlamentares favoráveis à revolução se dirigiram a pé, cruzando a Praça dos Três Poderes, em plena madrugada, com destino ao Palácio do Planalto, ao qual tiveram acesso pela porta dos fundos. A nova ordem foi garantida com as tropas nas ruas da Capital da República e nas principais cidades do país.
Os anos seguintes marcariam de forma indelével a juventude da década de sessenta para o resto de suas vidas. Da vitrola movida a pilhas provinham os ritmos das reuniões dançantes. Beatles e Rolling Stones disputavam a cabeça daquela geração. As festinhas eram regadas a cuba-libre ou simplesmente Coca-Cola. Fumava-se Minister, mascavam-se chicletes e, na sala a media luz, ao som das canções românticas de Peppino di Capri e Sergio Endrigo, escutavam-se os suspiros e adivinhavam-se ardentes afagos e carícias entre os dançarinos. A revolução sexual ainda não fora assimilada. Aos rapazes restava, findos os bailinhos, acorrerem ao sobrado da “Tia” Carmen – a casa da luz vermelha –, conhecido serralho da Praça Garibaldi; aos menos afortunados, o remédio único e imediato para escroto dolorido: trancar-se no banheiro de suas casas.
O primeiro “baseado” experimentado por Aleph causara-lhe náusea e vômitos. Não repetiu a experiência. As matinês dos domingos, quase sempre, eram nos cinemas Marabá, Cacique, Vitória, Imperial e Guarani. Quando Setembro Vier. iremos a Ritmo de Aventura saber Por quem os Sinos Dobram?, depois, gozar as Férias no Havaí e avistar do alto do Trapézio Os Pássaros, pois O Sol é Para Todos e Os Inimigos não Mandam Flores para Goldfinger pois O Espião que Veio do Frio, enquanto Assim Caminha a Humanidade, entre Gritos e Sussurros, para 2001, uma Odisseia no Espaço”, … al di la de la stelle… um Candelabro Italiano.
O guru da hora chamava-se Sartre e o apóstolo da grande recusa, que anos mais tarde terminaria formando o exército de um homem só: Marcuse.
Aconteceu tudo em 1968: os estudantes se revoltaram e armaram barricadas em Paris, não para tomar o poder, mas para dele debochar. Outra ordem caduca começou a ser contestada no leste europeu com a “Primavera de Praga”, que os tanques do império soviético sufocaram. Por toda a parte a autoridade viu-se desafiada: em casa, na escola, na cama, no trabalho, nos palácios. Esse mesmo ímpeto varreu a América, onde a geração nascida no pós-guerra impunha seus valores. Se Bob Kennedy e Martin Luther King tombaram em poças de sangue, as minorias partiram para ocupar os espaços que imaginavam lhes pertencer. Já o Brasil, parou. Com os estudantes primeiro nas ruas, depois na cadeia, o regime trancou o país. A passeata dos cem mil, no Rio de Janeiro e um discurso infantil do deputado Márcio Moreira Alves, propondo o boicote ao sete de setembro, irritaram os militares e serviram de gota d’água para o Ato Institucional Nº. 5. Com ele, o Presidente da República, “Seu Milito”, fechou o Congresso, cassou mandatos e censurou a imprensa. A partir daí percebeu-se que esta seria uma longa ditadura. A tortura, que não constava do texto do AI-5, continuava regendo a escrita dos arquivos confidenciais dos quartéis. Vetou-se a impetração de habeas-corpus, pois o Ato Institucional proibia a apreciação judicial desta garantia nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Sem direito a habeas-corpus, sem comunicação de prisão, sem prazo para a conclusão do inquérito, o preso ficava absolutamente indefeso nos órgãos de segurança, desde o dia do sequestro até quando passasse à Justiça Militar. Indefeso e incomunicável, o detido era obrigado a confessar aquilo que os seus interrogadores queriam, depois de longas sessões de tortura. Obtidas as confissões, os inquéritos eram “legalizados” e as prisões comunicadas.
Nos palcos, o tropicalismo de Gil e Caetano revirava a música brasileira e, como na política, radicalizava tudo. Quem sabia fazia a hora, não esperava acontecer. Stanley Kubrick antevia o ano de 2001.
Sergio Agra
agraeagra@terra.com.br
Escritor – Autor dos livros “Mar da Serenidade”, O Corpo de Gioconda” e “Ryujin, o Dragão Mágico