Mar da Serenidade – I
a morte que nos ameaça.No final, ela
vence, pois desde o nascimento esse é
o nosso destino e ela brinca um pouco
com sua presa antes de comê-la. Mas
continuamos vivendo com grande in-
teresse e inquietação pelo maior tem-
po possível, da mesma forma que so-
pramos uma bolha de sabão até ficar
bem grande, embora tenhamos abso-
luta certeza de que vai estourar.” –
Schopenhauer.
Inútil, ele anuncia os dias de um fevereiro já deletado das memórias. As tardes mormacentas deste primeiro julho do novo milênio enlouquecem até mesmo as aves de arribação que sobrevoam as dunas e os telhados das casas nesta praia quase deserta. Desatinados, esses pássaros voejam sem saber qual o seu Norte. Sinto-me mais uma nesse bando de aves tresloucadas.
O silêncio somente é desvirginado pelo plácido rumorejar das ondas na rebentação. O mar parece ter olvidado a sua força, as energias anuladas, o furor esmaecido ante o inusitado descompasso das estações.
Aqui cheguei neste entardecer, após uma viagem que me parecera longa e desgastante. Minha avó havia sugerido que eu avisasse a mulher do caseiro; não apenas a teria como companhia, sobretudo alguém que cuidasse das lides da casa. Recusei-lhe a sugestão. O que eu mais ansiava era exatamente ficar a sós por um tempo ainda indefinido.
Apanho no porta-malas do carro a pequena e única bagagem, além dos mantimentos que entendi suficientes para uma breve estada. Decido que hoje nada farei senão abrir portas e janelas para ventilar a casa e amenizar o bafio sepulcral que ela encerra.
Estou extenuada, extenuada até a morte, por uma longa agonia. E quando, afinal, me é permitido sentar, sinto que vou, pouco a pouco, perdendo os sentidos. Num rompante, me ponho novamente em pé. Transpiro por todos os poros. Dou alguns passos sem uma direção definida; tudo é escuridão e vácuo. Minha excessiva fadiga induz-me a deitar. Logo, logo o sono se apodera de mim.
Dormi profundamente. Assim mesmo, entre sonhos e despertares – não fiz distinção – vislumbrei o Nadador. Corri ao alpendre para vê-lo melhor. Ele, no entanto, se escondera por trás de uma vaga.
Ao despertar de um profundo sono, quebramos a teia delgada de algum sonho. Entretanto, um segundo depois, por mais fraca que tenha sido esta teia, não nos lembramos de ter sonhado.
Passa do meio-dia e me dou conta de que há tarefas a serem cumpridas. A faxina, com toda a certeza, haverá de me ocupar o restante da tarde. As vidraças das janelas e mesmo a louça e os espelhos da casa irão, aos poucos, readquirir o brilho que a intermitente maresia embaçou. Teias de aranha serão varridas e a poeira acumulada nos móveis cederá não sem alguma resistência ao brilho da cera e dos lustradores depositados sob a pia da cozinha.
Somente há pouco concluí a faina. Neste exato momento o sol já está quase morrente. Olho o mar por entre o cortinado de rendas de uma das janelas. Vislumbro, ao longe, o que parece ser o solitário Nadador. Esqueço as vassouras e os panos num canto qualquer.
Apresso-me em chegar ao alpendre para vê-lo melhor. Como sempre, ele, em seguida, desaparece por detrás da rebentação, onde as águas do oceano adquirem a tonalidade definitiva do verde-escuro. Sequer tenho a convicção de que se trata do mesmo aventureiro que eu, invariavelmente, acostumei a avistar, nesta quase derradeira hora da luz do dia, desde os tempos de minha adolescência, quando aqui passava os dias de verão. Ignoro, por isso, se aquele ser misterioso, que hoje ansiosa procuro com os olhos, seria ainda um jovem homem.