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Mar da Serenidade – IV

Para presentear a jovem filha que ingressaria no Curso de Magistério, Tiarajú e “Dondinha”, meus avós maternos, não mediram esforços e economias para se aventurarem a migrar da pequena aldeia nas Missões, rumo ao até então desconhecido grande oceano. Alojaram-se num pequeno albergue, próximo à casa dos d’Ampezzo.

A pousada se valia de uma servidão que passava rente ao alpendre lateral do Chalé Grande para que os hóspedes alcançassem a praia. Meu pai, então, tinha por hábito, todas as manhãs, estender-se na cadeira preguiçosa para a leitura dos jornais.
Numa dessas ocasiões, teve a atenção despertada pelo andar miúdo e gracioso da bela jovem a caminho do mar. Bastou isso para que dissesse a si mesmo que ali estava a mulher que ele viria amar.

De minha mãe sei apenas por um retrato que minha avó paterna, durante muito tempo, cultuara em lugar de destaque sobre um console na sala de música do solar de Porto Alegre. A foto estampava o sorriso franco, quase infantil, de uma trigueira mulher em seus dezoito anos de idade, sentada no balanço sob um caramanchão: as pernas cruzadas com a naturalidade de um moderno top model.

Trajava uma camiseta de algodão natural e a saia balão com estampas florais, que permitia se entrever os sutis contornos das pernas. Às suas costas, os braços estendidos e as mãos segurando com firmeza as correias do balanço, o belo e garboso militar que envergava o uniforme de voo dos pilotos dos jatos de caça: meu pai. Hoje, este retrato está entre os meus pertences. Trago-o na mala que pouco desfiz desde que cheguei ao Chalé.

Este calor inusitado, fora de época, o mormaço pegajoso e a praia quase deserta não exigem que eu vista outras que não um short, uma leve blusa e as sandálias. Na minha solidão busco a paz, a serenidade, quem sabe…
Até o Arlequim, depois de sua última e inoportuna visita, deve estar respeitando o meu querer estar só. Tenho o pressentimento, no entanto, de que ele ronda por perto. Na noite anterior, escutei com nitidez ruídos vindos do sótão, passinhos, ainda que rápidos, cuidadosos como os de quem chega em surdina e não deseja alertar sequer os fantasmas que lá hão de dormitar.

Num primeiro momento, desejei ardentemente que fosse “Totonho”, meu querido primo que, às escondidas, retornava do mar. Não! Não tinha ele a leveza dos passos que eu julgara ter ouvido. Deveria ser, certamente, ele, o Arlequim, ressabiado, vindo me espreitar durante minhas madrugadas insones.

Estaria o Arlequim magoado ante a rispidez com que o enxotei, quando do nosso encontro na praia? Em todo caso, fingi que dormia. Afinal, era preciso dar um basta à petulância com que ele costuma invadir minha vida e se investir, muitas vezes, contra mim, a desamparada.

Mar da Serenidade – V, VI, VII….
Estes e os demais capítulos estão no livro Mar da Serenidade, cuja editora, SVB – Edição e arte, cedeu-me os quinze exemplares que restaram da edição de mil. Caso o generoso leitor tenha curiosidade e desejo em lê-lo poderá solicitá-lo, através do e-mail agraeagra@terra.com.br , pelo valor de R$ 15,00.

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