José Alberto Santos da Silva
Colunistas

Meia noite da lua – José Alberto da Silva

Meia Noite da Lua

Com amigos num samba rasgado na Quadra dos Imperadores do Samba, travamos conhecimento com um sujeito com jeito de tiozão, bom de conversa como se faz, amistosamente, numa festa simpatia de bom ambiente. Este homem tirou várias selfies, pegou numero de celulares de vários de nós, inclusive o meu que recebi dele especiais atenções. Lembrou no grupo que amou uma mulher que conheceu nesta Quadra onde fazia anos que não vinha. Teceu elogios a ela que esforçada e séria, interrompeu bruscamente aquela relação alegando preferir ficar sozinha do que acompanhá-lo vez que ele não seria futuro pra ninguém. Tempos depois lembrou que soubera de possível gravidez de sua amada. Após falar assim ele se afastou. Não sei se ele conhecia algum dos meus amigos para saber como ele se introduziu no nosso meio. Perdeu-se na bruma dos conhecimentos que não sabemos de onde saem e para onde voltam. Foi mais uma camaradagem social de rua que travamos naquela noite de lua cheia conforme nos dissera um amigo do grupo que era metido aos estudos astrológicos.

Dias depois aquele homem me passa mensagem e repete pedido para eu mostrar nossa foto pra minha mãe para confirmar lembrança dele vez que ele a conhecia e suas irmãs Lina, Nina, Mina e a Frina. Não guardei o nome do sujeito. Dias depois, após o jantar servido risonhamente por minha mãe eu mostrei-lhe a foto que eu julgava sem propósito do sujeito que disse conhecê-la. Vi minha mãe transformar-se em algo assustador: envelheceu em minutos, esbravejou, escureceu as unhas e encrespou suas feições, mudou de voz, seus cabelos se espicaçaram, sua postura física se desgrenhou, seus olhos se esbugalharam, enfim, por momentos ao desconhecê-la tomei-a por uma possessão. Foi dormir vestida como estava, inclusive de tênis. No outro dia de manhã ao sair ela ainda dormia na mesma posição o que me assustou, pois fui verificar sua respiração. Daquela noite de psicose em diante nunca mais ela foi a mesma com o filho unigênito desproporcionalmente grandalhão em relação a seu mignon, a quem punha no colo e oferecia garfadas na boca feito guri. Taciturna, lúgubre, personificava o ponto mais escuro da luz, aquele que não cria nada, não move senão as marés do sofrimento. Passei a senti-la mal pasteurizada, pesadamente silenciosa e formal tal qual desconhecida.

Juntando os pauzinhos comecei a entender porque me afastei dos Imperadores do Samba e dirigi meus olhos para moças brancas até achar a Solange com quem me casei com a indiferença da minha mãe. Fixei ideia de que a mulher negra, guerreira, obstinada e maravilhosa é também teimosa e maniática; suas regras são as regras do mundo, por suas imposições por vezes inadequadas, anacrônicas, inoportunas e injustas tornam sacrificada qualquer convivência marital. Por vezes atrasadas no momento histórico por outras a frente de seu tempo. Mães solteiras, mulheres doentes num país doente de tudo, preferem criar filhos sozinhas do que compor família com alguém tão perdido quanto elas. Mulher negra pra cá, mulher negra pra lá, caribenha, pré-histórica Eva africana, Santa Marina, cientista na Nasa, universitária professora, como minha mãe, guerreiras lutadoras pelos direitos civis do oriente até o braço direito de São Pedro, mantidas no borralho social em serviços subalternos, nas cozinhas e senzalas encobertas pelo entulho da história, estupradas em meninas para morrerem podres em prostíbulos ou sub empregos. Enquanto isto eu estava mal casado com uma moça branca de qualidade e moralidade duvidosa.

Lembrei-me, então, que o desconhecido da foto, aquele do samba rasgado na Quadra dos Imperadores do Samba. Quando prestei atenção na conversa do sujeito com meus amigos, ele descreveu as feições parecidas e marcantes, endereço e profissão, hoje em desuso, de costureira, da minha mãe e de suas irmãs. A junção de emoções e psique desembocam em ações e reações que não sabemos explicar. Eu já havia perdido a foto daquele sujeito para provocar nela uma explicação para o que houvera naquela noite em que a lua mostrou influência nos seres vivos. Perguntei sobre ele aos amigos que estavam comigo ninguém lembrava dele. Teria que perguntar diretamente a minha mãe, fosse qual fosse a consequência. Para visita-la fui ao belo Urubatã e estacionado frente à sua casa. Esperei que ela concluísse sua caminhada tendo-a enxergado ao longe com seu cachorrinho, aproveitando os eflúvios do mato ao entardecer. Ela se aproximava e eu repassava de memória como conduzir nossa conversa. Ela percebera minha chegada mas nem por isto mudou o ritmo de seu passo. Ao revisar relembranças, parecia que daquela noite da desfiguração de minha mãe até o insight que tive dias atrás numa noite de solidão mal dormida com a Solange, parecia que tudo teria transcorrido de um dia para o outro quando o afastamento de minha mãe durou anos. Descortinei minha alma num mea-culpa que confundiu as duas. Injusto com ambas pelo favor de filho e bom marido; com uma pela dedicação, com a outra pela história que nos separa pela cor da pele. Eu era o contrário do homem branco que quando é bom é livre para ser bom visto que nada o impede disto.

Eu ficava surpreso ao me dar conta que a mulher branca também fica beiçuda. Se ela desconfiasse eu não poderia debochar disto nem ela dizia a razão para seus emburramentos. Eu julgava haver-me casado com a pele branca da Solange para obter um libertador apagamento histórico para assim desfrutar minhas conquistas sociais e profissionais sem preocupações com as crescentes desigualdades deste país, sem preocupações com a fome alheia, sem preocupações com o que há para indignar-se quem pretenda ser civilizado. A partir daí com esse passo para proclamar minha independência, caso enjoasse desse peixe, sem ser criticado eu poderia voejar por outros aquários. E não é que minha “permanência” na frequência da Solange me pôs de quatro para reconhecer meu sentimento de amor por ela? Ela desconfiava dos meus guardados mantidos aos pedaços os bolsos de meu pijama de bolinhas sem considerar dores e carências que entram na minha composição. Só não gosto de suplicar seus favores amorosos, para não vê-la olhar, com cara de desprezo, para aquilo que tenho como motivador artístico-cultural para minhas notas de rodapé.

A partir daí comecei, num gritedo crescente emocional de samba enredo a ser levado de volta à minha mãe solteira e a ariscar palpite sobre meu pai. Como nunca havia feito antes, atrevi-me a dizer que conhecera meu pai. Detestei perceber que ela não esboçou nenhuma reação. Recordei-lhe o único encontro na Quadra dos Imperadores do Samba, e sem se dirigir diretamente a mim, ele fez questão de dizer onde conhecera sua amada que o escorraçou porque ele não era ninguém com dezoito anos de idade; eu disse a ela que ele mostrou saber a respeito dela e da sua família, e de forma intempestiva pediu que eu te mostrasse a fotografia dele dizendo que tu o conhecias. Sem virar-se para mim ela disse ter-se arrependido de haver me proibido a paternidade dele, mesmo que um tanto duvidosa frente aos valores que ela cultivava. Mostrou assim que lembrava do incidente que eu quisera esquecer que lhe provocara o transtorno que a fez dormir vestida. Quanto mais eu lhe dizia não ter sentido a falta de um pai mais ela chorava e se lamuriava afeiçoando-se encarquilhada, feia e até mesmo mal cheirosa, pior do que aquilo que havia se tornado. Percebi que jamais aceitamos que nossa mãe tenha motivos pra chorar. A cena de teias de aranha e silêncio ameaçador me sufocava e me fazia suar frio.

Levantei-me num salto de hospício eu a bolinei, beijei e abracei como nos tempos de nossa melhor amorosidade. Inicialmente carrancuda como uma vítima de estupro, foi soltando suas amarras para exibir belo sorriso enquanto eu girava com ela no colo. Agora deu-se o processo inverso e sua transfiguração foi um encanto. A cada giro que eu dava com ela de pernas pro ar, sua casa se coloria, a flores se abriam, sua iluminação a remoçava e nos reconhecíamos de novo. Perguntei-lhe o que houve com ela naquela noite de surto psicótico ela respondeu que entendeu que meu pai a teria desclassificado como mulher, porque logo depois ela entendeu ter errado com ele e não teve coragem de procurá-lo com receio de que, então, ele a expulsasse. Pareceu dissipar-se a nuvem que embaraçava meus sentidos de amor filial e marital. Concedi à minha mãe o mesmo valor dado a Solange e vice-versa percebendo ali uma magia que eu como menino, até aquela idade, não sabia o que fazer com ela.

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