Mil e um tons de azul – Sergio Agra
São 2h40min. de uma quarta-feira de tão abafadiça que o Split requereu licença saúde. Liguei o computador há exatos dez minutos. Desgastada, a velha máquina exige este tempo para entrar em funcionamento. Não importa! O essencial é que ela se mostra presente e diferentemente de um psicoterapeuta dispensa agendamento prévio.
Sarasvati, a deusa hindu da purificação e da literatura, enterneceu-se ante meu sono em suspenso na madrugada sufocante como o túnel do Trem Fantasma dos Parquinhos de Diversões. Como eu dizia, a deusa me tomasuavementepela mão e conduz meus passos até a biblioteca, para o computador…
Há alguns dias “descobri” na Netflix o seriado “Os Casos de Cedar Cover”, uma pequena cidade dos Estados Unidos, cercado de belíssimas montanhas e às margens de um imenso lago. A série retrata a rotina, o dia-a-dia, as conquistas, os fracassos, as alegrias, os dramas dos moradores daquele vilarejo. Uma especial e instigante personagem, a de uma juíza de Direito, dominou minhas atenções. No episódio el atuava na Ação de Guarda Compartilhada dos filhos menores de casal em litigiosa separação.
O instituto daGuarda Compartilhada é consideradocircunstância ideal para quando mãe e pai de uma criança não vivem juntos. Desde o final de 2014 a guarda compartilhada é considerada a divisão padrão em casos de pai e mãe que não morem na mesma casa, a não ser que um dos dois não possa ou não queira ter a guarda. Esta não exige necessariamente ser revezamento de casa, a criança pode continuar morando em um só lugar. Isso é até recomendado, para que a criança não viva sendo transferida de uma casa para a outra.
Apesar desse “avanço” no Direito de Família, mesmo a guarda compartilhada não tem o condão de eliminar as nefastas consequências, sobretudo em filhos menores de sete anos de idade, cujo desenvolvimento emocional e psicoafetivo não se consolidaram, da “contrapropaganda” subliminar gerada nas separações mal resolvidas.A mãe (ou mesmo o pai), por conta dessas dissidias, insufla na mente da criança somente imagens do “pai(mãe) monstro”, rejeitador(a) e ausente.
Como toda causa gera efeito, ação implica reação, se aquela criança (ou adulta) não for analítica e, sobretudo, honestamente tratada por profissional da área, há de resultar para si, em nível inconsciente, não necessariamente o sentimento de ódio, mas de negação ao genitor injustamente desacreditado.
Para estes filhos o pai(ou a mãe) deixará de ser necessário, menos ainda legar o seu significados.
Meu pensamento se volta para Angelo, desde a infância filho de pais separados. Hoje, com quarenta anos de idade, casado, pai atento e amorosíssimo de um moleque de cinco anos, profissional realizado e altamente considerado naempresa em que trabalha, vocalista e guitarrista da banda de diletantes roqueiros. Aprecia os tintos nos finais de semana invernais e a generosa, gelada e espumante cerveja nos happy hours das sextas-feiras com os amigos em que sempre prescindiu dos cigarros.
Restam algumas horas para o amanhecer. Sarasvati generosamente me leva de volta aos sonhos.