Na alma do litoral – José Alberto Silva

José Alberto Santos da Silva

Na Alma Do Litoral

O distanciamento social combinado com o confinamento fez mais triste o segundo inverno pandêmico, sobretudo pelo alerta aos jovens desencorajados a aglomerações, rebuliços clandestinos, encontros com parentes e amigos. Confrontados em ter vida de harmonia os casais perderam estribeiras, separações, gritarias ouvidas no prédio, feminicídios. Após a perda de dois carnavais, verões distanciados, salários em sobressalto, dias com ares de domingo suicida, engordes nervosos, perdas sucessivas e ameaças, o outono-inverno chuvoso nos trouxe ideia de nosso próprio funeral. Oito da manhã, cinco da tarde, noite fechada como piorado novo normal. Até o Sol era úmido. Nosso contato corpo a corpo era impedido pelo desalinho de lençóis, cobertores, mantas, travesseiros. O desequilíbrio ecológico não impediria que fôssemos desfrutar da noite no litoral norte gaúcho. Para exercitar o desapego, virados em vinhos e cervejas, na volta um taxi podia nos largar onde quisesse. Velha Tramandaí! Saudosos verões de areia e carnavais, da Rua da Igreja e dos calçadões é a glória da arte do Leo Fontes com suas primas e bordões.

Sair de um apto. pequeno para se trancar em outro e dizer que foi à praia é o que temos feito no aguardo de uma vida normal. Rigores maiores. Na autonomia que Deus me deu, decidi tomar qualquer coisa num Boteco vez que estava cheio de beber em casa olhando para o chuvisco da nossa Tv de tubo. Comuniquei isso a ela que ensaiou reclamos policialescos, mas se apetrechou na troca de roupas, no borrifar de perfumes que rescendiam pela casa, em eternas discussões com o espelho. Senti-me glorioso por fazê-la compreender que eu havia decretado uma nova ordem mundial para mim, isto é – ninguém manda mais em mim.

Pré-dispostos à descontração tomamos por enfeite a acolhida num Boteco de mesas e cadeiras vazias. Contrastando com isto lá estava nosso amado Leo Fontes. De família de artistas não sentem dor pela demora de reconhecimento nacional. Ergueu os olhos, mas não nos enxergou na meia luz tomado pelo transe de conciliar voz e violão, caprichando nos acordes ouvidos por milhares de razões que aplaudiam a consciência de seu talento. O garçom, com a máscara no queixo, pouco mais do que menino, mostrava sorriso plastificado que o freguês podia tomar por simpatia ou deboche.

Uma mulher fantasiada de Seis Sabe, lantejoulas, castanholas e purpurinas, com quadris de dançarina entrou no Bar, dançou como cigana descalça; gritou estridente como índia parturiente, e referindo-se ao Leo Fontes que não ergueu sua cabeça explicou que ele estava incorporado de notas musicais; e olhando em nossa direção explicou que a música é um tipo de droga. Na noite as pessoas encetam relações com naturalidade. Dançando a cigana fora do contexto, tipo Pomba Gira fez a volta no salão e saiu pela mesma porta que entrou.

Pede para sentar-se à nossa mesa um sujeito magro, tipo solitário que aparentando bebedeira continuada; pediu garrafas de água, um jarro de vinho e uma cerveja ao garçom sorriso; apresentou-se como poeta, médico e jornalista. Na medicina pretende curar o câncer; reclamou que a autonomia médica na verdade não existe, atrelada à condicionantes que atendem a interesses que considera indizíveis. Após perder um irmão para esta doença pretende experimentar descome de cobra com limão. Por essas e outras, disse, por pouco não foi preso, mas ficou proibido de exercer a profissão.

Ao erguer a cabeça novamente, O Léo Fontes correu os olhos pelo salão, agora repleto, e identificou artistas desempregados que buscavam holofotes de oportunidades. Bares fechados, horário reduzido, maridos vigiados por vírus e protozoários. Onde o Leo Fontes se apresentasse, para lá acorriam talentos desmilinguidos em marcha ré, desempregados e embriagados, conjuntos com instrumentos debaixo do braço, entre vários que pululam sem dó e lá se perdem à procura de lugar ao sol.

O homem com ombros pontudos de um cabide explicou que era alcoólatra em recuperação e só teria que beber água por 24 horas. A bebida seria para nós. A Alma que o observava com restrições despejou em sua fuça: autonomia médica não é licença para fazer estupidez que nem curandeiro pode fazer. Opinião tem limite de dignidade. Ele retrucou ao responder que a estupidez só é crime se for levada para a saúde pública. Como jornalista e poeta, pleiteava escrever para um Site de Entretenimento e Notícias chamado Litoralmania com a promessa de publicar poesia com autonomia. Explicou que a poesia dá liberdade para lançar imagens pelo jogo de palavras. Virou-se para Alma e perguntou: será que me darão autonomia?

A chegada de meu primo Sérgio e sua esposa que sentaram na mesa ao lado, foi a saída que ganhei para fugir deixando a Alma discutindo com o tipo. Meu primo Sérgio, frequentador assíduo da noite no Litoral, conhecia o sujeito tido como um pé chato no saco de qualquer um. A Alma e o sujeito discutiam quase aos gritos, com ela mostrando igual exaltação que tem comigo. No final ela vai reclamar de mim por tê-la deixado com ele.

No intervalo para a troca de músicos, no salão de risos, cantos e tilintar de copos e pratos, ouviu-se a discussão de um casal em desavença. Com “psius” pedindo basta plantou-se quietude constrangida. Eram minha mulher Alma e o sujeito que conhecemos naquela noite. Ela levantou-se resmungando e veio sentar-se conosco. Dois minutos depois, irritada comigo embora eu estivesse noutro planeta, determinou retirada. Eu não disse? Deixamos o Leo Fontes, o marido da Música, envolvido nas curvas de cifras, claves orgásticas e bemóis. Estranho, disse ela no outro dia ao me chamar para o almoço, continuas atraindo gente caída, bêbados, loucos e prostitutas. A esta acusação, de forma bíblica eu parafraseava o Léo na generosidade dizendo que os “outros” – não precisam de mim.

Com um traço de riso no canto da boca, olhava os movimentos da Alma na cozinha, como um paxá servido por vassala. Ela andava pela casa desde cedo. Era nosso almoço de domingo e o samba arranhava na vitrola. Fiquei na cama de preguiça percebendo-a lá da sonolência. Sai-se mal a coitadinha sensual ao pensar que eu esteja insatisfeito e olho pra ela com ares de censura. Em dúvida ela fazia movimentos incertos, ríspidos e amuados ao manusear pratos, travessas e talhares; eu a observava em silêncio para que ela não percebesse meus pensamentos divertidos. Sem me olhar diretamente ela me observava com outros sentidos de mulher. A mulher negra, por vezes, demonstra seu dom da insatisfação adquirida e reclama de tudo, até daquilo que gosta e acha bom. Mal sabia do orgulho que eu sentia de sua beleza intrínseca.

Observava sua gesticulação, seus cabelos em desalinho, trajes casuais, restos de maquiagem, profunda beleza madura! Oh Deus! Que meus olhos lhe sirvam de espelhos! Ela me embriagava às raias de emoções de dor no peito. Daqui a pouco, cá com meus botões, ela me beija ou me joga uma frigideira pelas dianteiras faciais. Ontem a noite ela estava linda! Minha Rainha Doce trajava vestidinho estampado sugerindo aconchegos de inverno. Só prestei atenção lá no Bar depois de algumas misturinhas fermentadas na maionese musical do Leo Fontes e convidados. A vasta cabeleira crespa lhe dava ares esvoaçantes ao deixar escapar mechas que seu turbante vermelho não segurava como se ela tivesse sofrido forte ataque de minha tara pelos cabelos. Mal sabia ela da minha adoração. Se perdi a graça de fazer piada com a gripezinha, já não sabia dizer para minha própria Alma sobre os encantos que me provocava.

– Tu queres que eu morra?

Tive receios de que ela perguntasse de supetão. Em nossas brigas ela sempre lançava essa pergunta, para provar nossas frequências diferentes. Mal sabia que para este almoço eu só queria sua sopa original. Em ocasiões assim eu fazia morisquetas em suas costas. Ontem, de manhã, ela voltou-se de repente pra mim para um flagrante. Por isto eu decidi sair à noite porque ela prometeu uma loucura se minhas caretas se repetissem em suas costas. Ora, se ela não reconhece suas loucuras diárias, frente a esta promessa eu tinha que fingir não notar nosso retorno ao velho normal.

José Alberto Silva

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