No caminho de Taquari – Sérgio Agra
NO CAMINHO DE TAQUARI
Chovia muito na véspera daquela Sexta-feira Santa. As nuvens carregadas e a fúria dos ventos emprestavam a São Jerônimo, Triunfo e General Câmara, de tão quietas e desertas, a aparência de cemitérios abandonados. O barco a vapor de Mestre Dário, o Porto Alegre, o maior da frota da Companhia de Navegação Arnt— com capacidade de transportar até 400 passageiros, dotado de camarotes, cozinha e refeitório —, enfrentara com valentia a correnteza do Rio Jacuí. Há muito escurecera quando a embarcação, finalmente, enveredou para o Rio Taquari, por onde alcançaria o embarcadouro da cidade a que dera o nome. No porto, apesar do dilúvio, Nenê Agra, meu avô, lá estava, abrigado do torrencial aguaceiro, no volante do seu Prefect estrategicamente estacionado o mais próximo possível do cais, à nossa espera.
Após o tormentoso desembarque, envolvido pelo afetuoso abraço avoengo e perguntado como fora a viagem, eu jurara que jamais faria outra jornada a bordo de balouçantes embarcações, não nas condições de tempo como o daquela noite. Minha mãe, sempre prestimosa aos meus caprichos, aquiescera e, para me sossegar, conjeturou que, dali para diante, as excursões àquele pequeno e bucólico lugarejo se fariam no automóvel de meu pai. Esta decisão, no entanto, não passaria de uma única e desgastante experiência, às vésperas do Natal daquele mesmo ano.
A rodovia — então extremamente precária — era em alguns trechos de chão batido. A poeira erguida pelos automóveis que trafegavam no sentido contrário cegavam a visão de meu pai, sem considerar as pedras que eram lançadas com violência pelos pesados caminhões deixando suas marcas na pintura da lateral do carro. Em dias de chuva a estrada transformava-se em verdadeiro atoleiro e não guardavam a qualquer tempo o fascínio das viagens, mesmo nos barcos a motor que os sucederam, nos antigos vapores impulsionados por caixas de roda.
Ao se partir de Porto Alegre, antes de alcançar o delta do Rio Jacuí, vislumbravam-se das vigias dos camarotes as Ilhas da Pintada, da Pólvora e das Flores para, aí sim, se iniciar a subida do leito sinuoso dos rios Jacuí e Taquari, margeado por densas matas nativas que presenteavam com deslumbrantes cenários a cada meandro. Ao longe e em dias de intensa claridade, a uma distância de quatro quilômetros do porto da cidade, quando o vapor iniciava uma longa e suave curva para a esquerda, apoiado nas balaustradas eu avistava por entre a copa das árvores do bosque que ainda hoje circunda a pequena povoação, primeiro, o campanário da Igreja Matriz São José de Taquari, na elevação da Rua Sete de Setembro; aos poucos, os altos muros e os telhados já sem cor definida dos antigos sobrados no estilo açoriano. Mais próximo, eu distinguia, tal sentinela, a possante águia esculpida em granito na cumeeira do solar de meu avô. A ave parecia preconizar a chegada de seus hóspedes.
Na casa avoenga vivenciavam-se verdadeiros festivais de aromas e sabores indescritíveis que se perpetuariam na minha memória: a essência do óleo de peroba nos móveis antigos, o perfume dos jogos de cama lavados e caprichosamente engomados, os eflúvios da goiabada, ou do doce de abóbora recém-feitos em tachos de cobre pela avó, que se evolavam por todos os recintos do casarão. O avô não cabia em si de contentamento com a visita do primeiro neto. Prometia, para o dia seguinte, uma ida ao orquidário para exibir os novos espécimes de sua coleção e as medalhas mais recentes, fruto dos lauréis nas exposições.
Na companhia de meu avô eu fruía naquela hora preguiçosa de pós-almoço do suave e inusitado prazer em aspirar a adocicada fragrância da fumaça do crioulo e ver o fumo caprichosamente desbastado e enrolado com habilidade na folha de palha. Eu era tomado por assomos de risos ante os “causos” então narrados com fina ironia — traço marcante do ancestral — das gafes e trapalhices de alguns confrades da aldeia. Meu avô inventava ante minha ingênua curiosidade anedotas contando as sandices de antigo administrador da cidade.
Nos feriados prolongados como aquele a casa após o almoço era invadida pelo alarido dos demais netos, a despeito dos clementes pedidos de minha avó para que guardássemos silêncio, afinal a sesta era sagrada para o velho orquidófilo e exímio inventor de histórias. Era, então, permitida a incursão do alegre bando à Lagoa Harmênia.
Para alívio de minha avó, o descanso do patriarca estava salvo.