O amor no tempo do Coronavid-19 – Sergio Agra
O AMOR NO TEMPO DO CORONAVID-19
Lembrando Gabriel García Márquez,
in “O Amor no Tempo do Cólera”
Fui convidado para o casamento de Macabéa. Não! Melhor eu ser sincero, verdadeiro, transparente! Eu estava tão ou mais perplexo do que os amigos, estes sim, os convidados pois, acredita, eu era nada mais nada menos do que o próprio noivo?
No foyer do Teatro Municipal…
Ah, sim, Macabéa decidira realizar as bodas no palco do centenário Teatro. Pois bem,…
…no foyer, enquanto os convivas e eu aguardávamos o início da até então misteriosa cerimônia, percebi que as mulheres sussurravam umas com as outras, Macabéa sempre foi… Não se fez imprescindível que eu escutasse o restante do cicio daquelas senhoras.
Faz-se imperioso que eu volte no tempo, cerca de 50 anos, para que possa narrar esta história incoerente da maneira mais coerente possível, se bem que tudo vá te parecer, leitor ou leitora, algo proveniente de alguém alucinada, doidivanas. Era exatamente esta a conclusão que chegaram todas as convidadas a respeito de Macabéa.
Conheci Macabéa nos primeiros dias de nossa mudança para um prédio de apartamentos recém-construído. Meu pai havia decido que era o momento de deixarmos a casa avoenga e vivermos nossas vidas independentes. Macabéa viria morar com a família no apartamento ao lado do nosso. Eu contava cinco anos de idade, dois a mais do que ela. Macabéa – além de minha mãe, é claro – fora minha primeira referência feminina. Crescemos juntos e desde cedo Macabéa dava mostras de uma personalidade fora dos eixos. Como mais tarde diriam as amigas adolescentes, Macabéaestá cem anos à frente da nossa geração!
Nas reuniões dançantes da nossa juventude Macabéa era ferrenhamente disputada entre mim e todos os rapazes da turma nas músicas mais lentas e românticas. Ao final dos bailinhos eu – assim como os parceiros de turma, tenho convicção – disparava para o silêncio e o escurinho de meu quarto. Macabéa então se transfigurava – para o mal-estar de minha mãe ao recolher os lençóis de minha cama na manhã seguinte – na imagem voluptuosa de meus delírios onanistas. Não tardei a perceber o que eu julgava ser apenas libido, mera fantasia sexual transformara-se em afeição. Mais do que isso, em amor.
Macabéa, todavia, transitava em órbitas diferentes. Conhecera um traficante, o “Ganso Maluco”, e nas sombras dos corredores dos prédios abandonados ambos injetavam metanfetaminanas veias. Numa noitada no Girau, emblemática boate dos anos 70, conhecera “Didu” Portfoglio, criado em meio aos drinques e às quadras de golfe do Gávea Country Club. Seria inexequível eu, filho de bancário e de professora estadual, confrontar o herdeiro único de família que semanalmente era notícia nas colunas do Ibrahim. Em três meses Macabéa e “Didu” tornaram-se marido e mulher. Decidi pelo celibato e pela eutanásia da minha paixão. Os porres e as brigas protagonizadas por “Didu” e Macabéa no Girau, no Zum Zum e em outros clubes noturnos eram o prato cheio dos paparazzi e dos repórteres quando sequer a interferência de Ibrahim serviu para que as revistas e os jornais se omitissem em noticiar o deprimente espetáculo. Desvairado, após mais uma das rotineiras discussões públicas, “Didu” montou em sua Harley Davidson. Na mesma velocidade com que dirigia ele bailou na Curva do Calombo…
Macabéa desapareceu por mais de anos.
Eu sorvia um caprichado Cappuccino na Confeitaria Colombo. Um vulto de mulher se aproxima. Ela retira o imenso óculos com armação preta que quase oculta seu rosto. Foi então que percebi Macabéa à minha frente. Sem qualquer embaraço ela me pergunta, Demorei? Admirado pela minha própria desenvoltura respondo, Apenas 30 anos! Sem qualquer indício de ironia Macabéa ameniza, Não importa! O irônico sorriso, marca indelével de sua personalidade, aflora em sua fisionomia, Você não é a minha boemia, mas aqui me tem de regresso e, como diria o teu dileto Marcel Proust, pronta para à larecherchedutempperdu… Macabéa tentava me desconsertar, falando por metáforas, mesclando música e literatura. Não obstante eu mantinha a lucides, …significa, em outras palavras, que… Ela apoia a mão esquerda sobre meu ombro, abre o mais fascinante dos sorrisos determina a sentença, …que haverá casamento. O nosso! Foinaquele átimo que perdi a naturalidade de que até então eu era senhor. Finalizando, ela arremata, Deixa as providências todas comigo. Será no Teatro Municipal, daqui a duas emanas. Tento esboçar uma reação, e ela esclarece, Fica tranquilo, teremos nossa lua-de-mel no Copa. A suíte está reservada. E se retira com a mesma airosidade com que chegara, deixando na Confeitaria Colombo um homem inteiramente atônito a segurar uma taça com o cappuccino agora frio e amargo.
Encontrávamo-nos no Foyer do Teatro Municipal, os amigos e os convidados. Eu trajava um elegantíssimo fraque confeccionado por Vasco Vasconcellos, que Macabéa fez vir de São Paulo com exclusividade. Pontualmente às 10 horas da noite as largas portas de acesso à plateia se abriram. A primeira visão foi dirigida ao vistoso tapete vermelho entre as alas das poltronas e que alcançava o palco através de uma plataforma. No centro do proscênio iluminado, a guisa de altar, a réplica cor-de-rosa do Cadilac Eldorado conversível que pertencera a Elvis Presley. Um homem solenemente vestido num libré, mãos cobertas por impecáveis luvas brancas, conduziu-me até a traseira do automóvel. A abertura de “Assim Falou Zaratustra”, de Strauss, explodiu nos potentes amplificadores estrategicamente espalhados pela plateia. De repente, do alto de uma das coxias laterais, irrompeu a figura de uma Jane Fonda na pele de Barbarela, vestindo um body de couro negro, uma besta firmemente segura pela destra, equilibrando-se sobre uma prancha de surfe sustentada por um corrediço que ia de um sidestage a outro do palco. A “Barbarela” não era outra que não Macabéa. Ao atingir o centro do palco, exatamente sobre onde se encontrava o Cadilac, a prancha inclinou-se levemente e Macabéa “Barbarela” posou exatamente sobre o volante do conversível. A plateia de convidados não logrou esconder a perplexidade e, antes de qualquer reação minha e dos presentes, despindo-se da personagem de Barbarela, encarnou a própria Macabéa em “A Hora da Estrela”* e proferiu, Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?
No telão, ao fundo palco, irrompeu a imagem de Elvis Presley. E pelos amplificadores a voz devirtuoso barítono entoou um comovente “WhatNowMy Love” Macabéa engrenou a primeira marcha do Cadilac e num arranque surpreendente desceu a rampa e sobre o tapete vermelho cruzou a plateia, o foyer e num voo mágico sob a luz da nova manhã ganhou as ruas orvalhadas da Cinelândia.
A suave luz do pequeno relógio digital sobre a mesa de cabeceira me avisa que agora são apenas 2h45min.
Fui convidado para o casamento de Macabéa. Não! Melhor eu ser sincero, verdadeiro, transparente! Eu estava tão ou mais perplexo do que os amigos, estes sim, os convidados pois, acredita, eu era nada mais nada menos do que o próprio noivo?
*A Hora da Estrela, romance de Clarice Lispector