O aprendizado do luto – nossos afetos precisam seguir a caminhada – Sergio Agra
Quem de nós, maiores de cinquenta anos de idade, não vislumbrou quando das visitas a casa avoenga, afixadas no alto e em destaque na parede principal da sala de visitas, as molduras ovaladas que guardavam as amarelecidas fotos da parentela que sequer houvéramos conhecido quando viva. Nossos avós respeitosamente cultuavam assim a memória de seus ancestrais, afinal, aquelas personagens retratadas a seu tempo tiveram seu significado e legaram cada qual a marca pessoal e intransferível na história que lhes fora dada escrever.
Ponto final! Nova linha, parágrafo!
Em nossa casa jamaisconsagramos o hábito de decorar consoles, mesinhas auxiliares, balcões, menos ainda, paredes com retratos emoldurados de antepassados. Não que meus pais, e agora eu, desgostassem – muito pelo contrário! –de através das fotografias gravar para a “posteridade” momentos inesquecíveiscomo os da minhaconstrangida e dissimulada estampa de anjo no altar da primeira comunhão, os das pedaladas sobre a primeirabicicleta de duas rodas no Parque da Redenção, os do passeio ao Pão de Açúcar e ao Corcovado, os das fériasde verão nas areias de Arroio Teixeira, os da medalha conquistada no torneio de bolinhas de gude ou de futebol de mesa, os do desfile na Parada da Mocidade, os do bailinhos de carnaval, metido em fantasias de pirata empunhando como “arma” a lata dourada do lança-perfume da Rhodia, os das formaturas do Ginásio, os do primeiro e único smoking para o baile de debutantes da amiga de infância. Não! Minha mãe dava-se ao trabalho de caprichosamente encaixar, foto a foto, nas quatro “orelhinhas” que as prendiam nos antigos e imensos álbuns de capa dura.
Quando ocasionalmente emergia a curiosidade ou a dúvida sobre um detalhe ou circunstância do que outrora havíamos vivenciado acorríamos aos empoeirados portfólios fotográficos, meio que esquecidos na última prateleira da despensa. Era então um festival de chistes e gargalhadas: – a calça boca-de-sino, cobrindo os sapatos masculinos sobre solados com quatro centímetros de altura;o berrantesuéter verde-bandeira de lã gola-rolê-além-pescoço; o vestido de lamê escamado da namoradinha eo terno de tergal, a gravata firmemente ajustada pelo prendedor de colarinho, para compormos o bolo-vivo nos quinze anos da amiga de turma. Mas fotos expostas em moldura jamais cultuávamos, sobretudo as dos que haviam partido para a Pátria Espiritual.
Somos seres espirituais, centelha divina do Criador. Somos Energia imorredoura, alma/espírito, sendo o corpo apenas envoltório finito enquanto encarnado deste espírito imortal. Antes de se unir ao corpo o espírito (alma) é um dos seres inteligentes que povoam o mudo invisível (aos vivos, aos encarnados), o qual temporariamente reveste um corpo carnal para se esclarecerem. O espírito, pois, não somente sobrevive pós-morte do corpo material, bem como preserva a sua individualidade e qualidades intelectuais e morais. Deixando o corpo físico, o espírito retorna à sua verdadeira Pátria, o mundo dos Espíritos. Este retorno não acontece imediatamente após a morte do corpo físico. O espírito, como ser inteligente, como energia que todos somos, detém semelhantes sentimentos aos nossos que aqui ainda permanecemos: saudades, ressentimentos, alegrias, sobretudo amor.
Se somos espíritos (desencarnados ou encarnados), por conseguinte pura Energia, quando evocamos nossos afetos que já partiram e irradiamos nossa saudade, nossa dor, nosso sofrimento,nossa alegria ante a recordação dos felizes momentos (e aí a exposição de fotos, seja num passeio de fim de semana, na festa de um casamento, de férias à beira-mar, enfim, elas “falam” mais alto), e até mesmo da lembrança de quão imenso fora o nosso amor, há um feed back, isto é, uma reação, uma retroalimentação, que por mais bem intencionada pensemos ser aquelas manifestações elas se tornam nefastas àimprescindível Caminhada a ser empreendida pelo espírito.
Como enfermidade psicológica, o luto ocupa um lugar singular. Antes de tudo, é universal, pois ninguém escapa do luto. Assim, ele é a única doença psiquiátrica universal. De todas as doenças psiquiátricas, é a que mais se assemelha a outras enfermidades clínicas, como, por exemplo, doenças infecciosas ou trauma físico. Nenhuma outra enfermidade psiquiátrica tem um início tão preciso, uma causa identificável precisa, um curso razoavelmente previsível, um tratamento temporariamente limitado e um ponto final específico bem definido.
No entanto, compreender o luto com o emprego de um modelo de doença médica é abandonar exatamente aquilo que há de mais humano em nós. Perda não é como invasão bacteriana, não é como um trauma físico. A dor psíquica não é análoga à disfunção do corpo. Mente não é corpo.
A intensidade, a natureza da angústia que sentimos é determinada não apenas pela natureza do trauma, mas pelo significado do trauma. E significado é precisamente a diferença entre o soma e a psique (o corpo e a mente).
Diversos serão os lutos (os significados do trauma), pois diferentes foram as perdas. Pais, filhos, irmãos, avós, sobretudo, os maridos e esposas que aqui ficaram. Nestes é que se concentra em nível maior a intensidade da angústia. Uma proporção dos cônjuges enlutados (aproximadamente 25%), não retoma a vida nem volta ao seu nível anterior de funcionamento, mas, pelo contrário, passa por um grau substancial de crescimento pessoal.
Esses viúvos e viúvas aprendem a abordar a vida de uma maneira bem diferente; desenvolvem uma nova apreciação para o valor da vida e um novo conjunto de prioridades. Aprendem a trivializar as trivialidades, a dizer não para as coisas que não querem fazer, a se dedicar àqueles aspectos da vida que dão significados. Aprendem a sorver de suas próprias forças criativas, a curtir a mudança das estações e a beleza natural que as cercam. E o mais importante: ganham um aguçado senso de sua própria finitude. Em consequência, aprendem a viver no presente imediato, em vez de adiar a vida para algum momento futuro.
E os afetos que partiram, por sua vez, farão a Caminhada de volta à Pátria Espiritual felizes de terem cumprido a que se comprometeram antes de virem para este Plano.