O bom súbito da paixão – José Alberto Silva

O bom súbito da paixão - José Alberto SilvaO Bom Súbito da Paixão

O Dr. Penser Claudio Mara ligou. Senti apreensão. Zaranzava na imundície de mim mesmo em cafés do Mercado Publico de Porto Alegre. Vai que novos cálculos aumentaram previsões de sobrevida pra mim. Não! Grupo de risco recomendou isolamento social. Saindo do consultório telefonei para Ametista com quem passaria este tempo em harmonia. Doçura de mulher, linda e gostosa, evitaria minha sucumbência. Com ela suporto inverno com sol e noites com estrelas.

– Alô, Ametista!

Contei-lhe do médico. Pensei nos beijadinhos que trocaríamos. Por sua alegria fluorescente eu seria o melhor companheiro da historia. Teríamos jantarzinho, vinho, luz de velas. Curiosamente, exigiu história das mulheres com quem andei e dos filhos que tivera. Mulheres!

Cheguei às 18 h. sobraçando garrafa de vinho, saltitando tipo garnisé. Ela ouvia samba do LOUCA SEDUÇÃO. No caminho – Homens!
– imaginei-a de terninho, brincos e colares, unhas feitas, cabelos altaneiros, coquete num saltinho, echarpe multicolorida. Frondosa, formidosa, exibidosa, plena do que sabia ser mulher. Fiz passinhos de samba, ela se arrastava. Estava horrível! Cara limpa manchada, china murcha, chinelas enormes, vestido molambo de faxina. Andrajosa. Rolos nos cabelos davam-lhe aspecto cômico e relaxado. Fui ao banheiro me refazer, até me urinava perna abaixo. Homem se mexe para por pra dentro ou pra fora. Por raiva seria cruel ao falar das belas mulheres que amei. Foi reencontro com ela, puída, após anos. Até ausente, a bruaca pegara cacoete de mexer os lábios como se mastigasse abrindo a boca ou falasse sem emitir som. Imaginei-a micoca na região do bate-estaca, lá pelas brumas de seu templo pélvico. Que quarentinada! Falaria enquanto ela fizesse o jantar; sem vinho, sem velas, tá? Aí ela completou a recepção:

– Fale das mulheres e dos filhos deixados por aí, ou te denuncio como abusador! Depois da primeira denúncia várias mulheres se encorajam e… – Ainda exigiu ela. – Nenhuma delas me deu filhos.

– Fale sério, tá?

– Esta bem! – Falei enlanguescido – Falo da primeira. A Ovelha! Tipo texel! Mais carne que lã, um sabor! Salvou meu inverno. Vinte vezes casaria com suas grinaldas. Mulher de matrimonio; olho de gato que brilhava no escuro. Inebriada de paixão nossa casa rescendia à lasciva de sua perfumência. Bolo crescendo numa forma, se estalava toda, borbulhava dentro de si mesma. Sabor de carne crua na boca; carne consagrada à santificação. Corpo físico. Batia salto atrás de mim com aquela blusa complacente. Surto de paixão que enobrece, enlouquece ou mata.

– Nome da Ovelha? – Na mouquice conveniente, não respondi.

– Retomou estudos pra me enrolar. Pedi filhos, negou ofendida. Casais amigos com filhos, perdiam liberdade, privacidade, direito a tudo conforme crescessem. Aceitei. Queria guarnecer o corpaço moldado pra mim. Foi a afirmação da minha condição de homem. Rompemos na crise que toda união passa após sete anos.

– Fale da outra… – Disse a Ametista ao passar do quarto pra cozinha.
Marfinesa! Emotiva e chorona. Linda! Apaixonante! Valia um marfim! Estudava e trabalhava. Católica devota. Ia missas por nós dois. Samba rasgado com o SEM COMENTÁRIOS? Nãão! louvações como se Deus precisasse de aplauso.

– Confessei com Deus! – eu dizia.
Acusava-me de misturar as crenças; eu ia à Igreja, no espiritismo, batuque, budismo. Católicos de pouca fé faziam pior em eventuais doenças ou problemas: corriam pra qualquer feitiçaria de quintal.

– Com Deus tu não precisas confessar. Ele sabe antes.
Saturou ao sétimo ano. Brigamos. Conheci a Zica, mulher cabeça. Formada. Dava orgulho tirava tesão. Eu pedia licença para – frequentá-la. Troquei a mulher de igreja pela militante política. Pedi filhos… neste mundo? Militante da causa negra repetia que os negros que sobrevivem são pessoas excepcionais, nunca pessoas comuns. A coroa proibiu estudos, terras e dignidade. A República confirmou o extermine-se negros e índios! Getúlio enganou, a ditadura militar, abafou tentativas de auto salvação. O Brasil só promessa! Quase tivemos uma intentona do nazismo parecida com a comunista.
Ametista andava do quarto pra cozinha. À meia luz fechei os olhos e pus os pés pra cima.

– Diga tudo ou te denuncio. – Ameaçou.

– Sinto perfume Ambrosíaco.

– Escuta Bunito! – Ela sempre me chamou assim. – Fale das outras.
Batia portas e atirava coisas. Pressionado andei de lado a outro. Frente a uma estante olhei fotos dela em momentos diferentes, representativas em trajes e situações como, por exemplo, com cartazes numa passeata. Voltei ao sofá com os pés pra cima.

– O nome dela?

A Zica era muita racionalidade pro meu lado. Vivemos bem por sete anos. Conheci a Hematita, paixonite cadeiruda! Senti que em sete anos chegaria ao fim. Filhos nem pensar. Fazia discurso inflamado sobre a psique da negritude. Eu era psicopata, o 21. Nas maratonas culturais eu dormitava. Afinal a Hematita repetiria à exaustão. Falavam de raça, classe, gênero e dos sete planos da natureza. Chorava a mulher negra com memória ancestral de quando era montada por escravos reprodutores e senhores para tirar crias em escala industrial; crias pertencentes ao Senhor. Não queria o risco de ser mãe sozinha do pós-escravidão.

Reprodutor durante a escravidão – lembrava – era atividade com vida de elite com tinha carne e leite como o senhor. Escravos do pesado comiam angu, (massa de farinha de milho com água e sal fermentados no fogo). Esses não invejavam os reprodutores pelas negras que enxertavam sim pela vida deles. O negro guarda a ilusão de ser daquela elite ou de outra; com diploma ou terno e gravata como brancos refuta compromisso racial, sofre desvio geral que o faz romper com ancestrais e a desprezar seus iguais. Revoltada Hematita questionava onde estavam nos 400 anos de escravidão e depois dela, a doutrina cristã, o humanismo social e político da Maçonaria e os antigos Orixás? As testemunhas do barbarismo cometido, os descendentes de escravos devem ser abatidos.

– Terminou depois de sete anos? –Perguntou com azedume.

Conheci a Coralia em grande estilo! Virou cobra! Olhar perscrutador, inteligente, sóbria, uma Coral. Tinha linda maneira de dançar samba. Não era dos livros, nem religiosa ou militante. Segurei até que um trago ou dois na frente dela e seu olhar me disse uma coisa e seus lábios outra. Passamos dos sete anos e conheci a Pratina! Prateado nos cabelos. Paixão ostentativa! Os cabelos perderam a tintura e comecei a deixá-la só para vagar no Mercado Público. Fui ao Gasômetro e meus amigos se desencontravam.

– O nome dela, desgraça! Explica estas conquistas. – cobrou ao passar da cozinha para o quarto.

Ora, sabe os suspiros profundos? Dor de barriga não dá uma vez só. – Repelido interrompi.

Dormitava e acordei assustado. Parou xingamentos e arrasto de chinelas. Chamei, chamei, ela não respondeu. Ao silencio seguiram-se toques de um saltinho. Deslumbrante! Posto de pé num salto, meus joelhos emperravam; mas o Sol era ameno e as noites estreladas. Era outra mulher! Colares e brincos, unhas feitas, cabelos altaneiros, saltitava em síntese de todas elas; terninho cor de vinho, uma echarpe multicolorida. Lembrei a juventude quando desejos carnais ensejavam poesia; pouca, tosca, mas intensa! Frondosa, formidosa, exibidosa, plena da natureza da mulher! Surto de paixão que enobrece, enlouquece ou mata. Veio na minha direção e afastou minhas mãos trêmulas:

– Não sou mil mulheres ou ama seca! Mulher é como bebida: se mistura faz mal. Entendeu?

Ela vai pra cozinha e comemorei exultante! Pulei e dancei contentinho. O Celular toca e confiro. Solto o aparelho e danço.

– Alô, Dr. Penser Claudio!

Ametista pergunta quem seria; cochicho o nome do médico e ela grita:

– É o bonitão do meu xixi? Estou velha, mas não morta. Fala pra ele sobre minha saudade.

Falo ao telefone: – Ela vai cuidar bem de mim, doutor. – Abafo o telefone, gesticulo pra ela sair; sussurro algo, ela sai dizendo:

– Eu mesma vou dizer! – grita da cozinha.

– Abração doutor! – desligo e ponho Wilson Ney a cantar para a eternidade: “Fogo de Palha”.

Ela volta e dançamos abraçados; planto sorriso largo e estático de criança pra tirar foto.

– É Bíblico – diz ela dançando lindamente – o Espírito Santo dá a cada homem um só dom que ele esfrega, como Aladim, até tirar seu gênio. Para as mulheres o Espírito Santo deu todos os dons. Uma mulher faz o que quer sem parecer falsa. Nenhuma gosta, porém, de ser tomada por isto ou aquilo. Só livre a mulher escolhe o que quer ser; é prerrogativa feminina mudar de ideia. Um homem engole sua palavra mesmo que seja venenosa.

– Eu só queria uma companheira que me acompanhasse sempre; se eu tivesse fome, sede, ou vontade de beber ou dançar samba, ela também tivesse. Só isto!

– Onde tu comprasses este vinho sem álcool?

– Reina silêncio? Apenas dance. – digo-lhe para puxá-la pra mim e repor no rosto aquele sorriso de palhaço.

– Jantar… chazinho ralo. – Sentencia – Salve o 21 de agosto! – Diz ela ameigando a fala: – Vamos comemorar os 55 anos de casamento! Bodas do meu nome! 1965! Ano da Serpente! Começo da guerra do Vietnã; Malcolm X foi assassinado; nasce a Rede Globo. Bem! Agora teremos o poder e a gloria da paz!

– Sempre fosses minha Rainha Doce, não é… Ambrosia? – dando-lhe novo apelido.

– Ametista! – retruca embrabecendo. – Trocar meu nome cansou.

Ora, lembro-lhe de um Padre dizendo de mulheres que trocam de nomes três vezes ao dia: de manhã a vaca levanta pra fazer café; ao meio dia a porca atrasa o almoço e de noite são levadas pra cama como pombinhas.

Não! – disse ela – Ilusão do macho que troca de mulher e é aceito. Pois sim! O negro não é mais escravo! Meu nome é A-me-tis-ta! Ela dança com altivez e sua postura resplandece a glória feminina.

Alquebrado frente à elegância dela, eu tossia, ajeitava os óculos, botava mãos nas cadeiras, sem folego parava de dançar o TOM ASTRAL. Mas não capitulei. Com vinho sem álcool e intenções, murchei cinquenta e cinco anos desde minha chegada para uma reconciliação definitiva. Eu estava horrível e sem mais gaiatice pra tentar. Cheguei arrotando muleres, pratos e taleres, fico até sem janteres. Ao trocar o apelido dela estava meu desejo de ser elite como reprodutor, mesmo após reunião dos AA. Vivemos presos por um cordão vital pelo qual nos retroalimentávamos mutuamente cada um com suas ilusões. Após bebedeiras de sete anos eu pedia suavidades para lhe dar odiosidades. Ela permitia a troca de seus apelidos, em briga de cabeça, sentimento e coração como vezes de novas paixões.

– Tua vez de calar! Reina silêncio? – Concluiu ela.

Danço apoiado nela. Surge uma criança dançando em nossa volta; surgem mais duas, quatro, varias vestindo trajes iguais ao da Rainha Doce. Alegres as crianças pulam sobre nós, tornam-se adolescentes depois adultos com os mesmos trajes coloridos dançando e cantando em nossa volta até abafarem a música, nos fazendo desaparecer no meio deles, sugerindo sucessão de gerações.

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